Milhões de metros cúbicos de água começaram a jorrar sem controlo em direcção ao Mar Negro a partir da Barragem hidroeléctrica de Kakhovka, na província de Kherson, e situada em território ocupado pela Rússia, estando, por isso, sob controlo de Moscovo há mais de um ano, depois de a parte superior da infra-estrutura ter ido pelos ares, naquilo que se pode considerar, a partir das imagens vídeo que foram postas a circular, uma implosão, alegadamente provocada por explosivos colocados no seu interior.

Essa constatação não inviabiliza outras hipóteses, como se ter tratado de um acidente provocado por falta de manutenção, como está a ser avançado também por alguns especalistas, ou de ter sido um bombardeamento ucraniano sobre a barragem que estaria, como é comum nestes casos, armadilhada pelas forças que a controlam como estratégia de dissuasão face a uma eventual tentativa de a tomar por parte dos ucranianos, mas deixa claramente mais evidente a tese de que esta terá sido danificada pelos russos como arma de guerra.

Isto, porque, como nota o especialista militar major general Agostinho Costa, na CNN Portugal, embora não seja possível afirmar sem dúvidas que se tratou de uma acção russa, são efectivamente os russos que mais benefícios retiram desta acção, que foi claramente controlada para provocar inundações a jusante sem provocar uma tragédia humana, porque apenas foi implodida a parte de cima, mantendo a estrutura principal de retenção da água na albufeira intacta.

Além disso, nem a segurança da central nuclear de Zaporizhia é posta em causa, face à necessidade de aceder a reservas de água para arrefecer os seus reactores, nem o canal de água doce que serve a Crimeia é afectado, porque as quotas de água no rio não desceram abaixo do nível de entrada de água nesse canal absolutamente vital para a Península sobre controlo russo desde 2014 e considerada a jóia da coroa das regiões anexadas da Ucrânia.

Mas, lembra ainda Agostinho Costa, com esta inundação controlada a jusante da barragem, as forças ucranianas que tinham ocupado as ilhas ao logo do Rio Dniepre, na província de Kherson, foram obrigadas a retirar à pressa, e as largas dezenas de quilómetros que poderiam servir de ponte para a contra-ofensiva ucraniana, passaram a constituir uma barreira praticamente intransponível, o que permite agora a Moscovo concentrar as suas unidades nas regiões mais a norte, como Bakhmut, em Donetsk, e a área de Zaporizhia e Lugansk, onde se prevê que possam ocorrer algumas das investidas da planeada e muito aguardada contra-ofensiva ucraniana.

Na ONU, o embaixador ucraniano, Sergíy Kyslytsya, sem mostrar qualquer rebuço, aponta o dedo aos russos e diz que estes provocaram na barragem de Kakhovka um "desastre ambiental gravíssimo", sendo mesmo, sublinhou, um dos mais graves gerados propositadamente na Europa em muitas décadas.

Disse ainda Sergiy Kyslytsya que se tratou de um "grave acto terrorista" com o objectivo de "causar elevadas vítimas civis e danos patrimoniais".

No entanto, Moscovo, que também pediu uma reunião do Conselho de Segurança da OU sobre o mesmo tema, não só nega que tenha feito implodir a estrutura como garante que foram os ucranianos que o fizeram, como, alias, a Rússia tem vindo, há meses, a anunciar que tal seria feito, e o diplomata russo na ONU, o embaixador Vasily Nebenzya, mostrou-se mesmo receptivo a uma investigação profunda das Nações Unidas ao ataque à barragem.

Um dos argumentos russos é que, ao inundar as margens do Dniepre a jusante da barragem de Kakhovka, na região de Kherson, isso cria uma barreira de defesa de muito difícil transposição, o que permite a Kiev concentrar as suas forças para a contra-ofensiva nas regiões mais a leste, onde pretendem avançar até Melitopol para depois cortarem o acesso terrestre entre a Rússia e a Crimeia, isolando estas duas áreas geográficas para preparar a tomada da Península, posteriormente, como o Governo de Kiev diz ser o grande objectivo.

Isso mesmo foi enfatizado pelo embaixador russo na ONU, Vasily Nebenzya, durante a reunião do Conselho de Segurança pedido pela Ucrânia, onde Moscovo, mais uma vez, viu a totalidade dos países ocidentais apontarem-lhe o dedo acusador, como, de resto, aconteceu logo na manhã de terça-feira, 06, com os media ocidentais sem excepção a darem como factuais as acusações de Kiev, ignorando as alegações russas de "inocência" neste episódio.

Embora os mais realistas dos analistas militares apontem como mais provável que esta destruição parcial da barragem tenha sido de autoria russa, até porque são os russos que a controlam há mais de um ano, porque são quem mais beneficia com as inundações geradas a jusante, factualmente ainda não foram mostradas provas concretas de uma e outra parte a sustentar as suas alegações.

Para já, e face à saída, curiosamente, da contra-ofensiva das primeiras páginas e dos ecrãs das tvs internacionais, depois de os russos terem dito que as várias ofensivas feitas pelas brigadas ucranianas foram rechaçadas com avultadas perdas para Kiev, mais de 1.500 militares mortos e centenas de viaturas blindadas destruídas, o Presidente ucraniano veio garantir que o esvaziamento da albufeira da hidroeléctrica de Nova Kakhovka em nada vai alterar os planos para a retomada dos territórios aos russos, negando claramente as perdas suspotamente infligidas e anunciadas por Moscovo nas suas fileiras.

Depois da alegada falha da contra-ofensiva, pelo menos nas suas primeiras fases, os analistas militares mais próximos de Kiev, e dos seus aliados da NATO, estão agora a subtrair importância a este momento, indicando que não se tratou do elemento principal da contra-ofensiva mas sim de reconhecimentos em força para testar e procurar vulnerabilidades nas linhas defensivas russas.

Face a isto, embora da parte russa tenha já sido dito que a destruição da barragem serviu a Kiev para tirar o foco mediático do seu falhanço na etapa inicial da ofensiva, é agora considerado entre os analistas e especialistas como razoável, que Kiev esteja a altear substancialmente os seus planos iniciais, seja por causa da barragem, seja por causa do falhanço inicial e das perdas registadas.

Isto, a ser confirmado, significa que a contra-ofensiva em larga escala e definitiva possa ser agora retardada por dias, ou mesmo semanas, seja por causa das inundações em Kherson, seja para repor o material destruído pelos russos na fase inicial do avanço das forças sobre as posições russas.

Perigo nuclear volta a assustar o mundo

A primeira atenção no pós destruição parcial da barragem de Kakhovka foi para a central nuclear de Zaporizhia, cuja segurança depende da água disponibilizada pela represa que garante a água essencial ao mecanismo de arrefecimento dos seis reactores que a integram.

Apesar de o líder da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Grossi, ter dito que não está iminente uma falha catastrófica na segurança da central, o mundo nem por isso sossegou, como o demonstra as preocupações manifestadas pela China.

E não é para menos, porque se trata da maior central nuclear da Europa, largamente maior que a de Chernobyl, também na Ucrânia, mas ainda no tempo da URSS, na década de 1980, explodiu um dos seus quatro reactores, largando uma gigantesca nuvem radiactiva sobre a Europa, matando milhares de pessoas - nunca se soube ao certo quantas -, com efeitos que se sentem ainda hoje, e deixando uma área de milhares de quilómetros quadrados, superior a alguns países europeus, sem condições para a vida humana.

Face a este cenário, de perigo, mesmo que não iminente, como sugere o director da AIEA, o italiano Grossi, o embaixador chinês na ONU já fez saber que o mundo exige aos russos e aos ucranianos que garantam por todos os meios possíveis que a segurança é mantida sem falhas.

O diplomata chinês, Zhang Jun, expressou as preocupações de Pequim sobe este sujeito, afirmando que a China está "profundamente preocupada com o que se está a passar" após a destruição desta barragem hidroeléctrica.

"A China reitera vigorosamente que num evento nuclear ninguém está a salvo e pedimos por isso a máxima contenção às partes envolvidas, evitando provocações que possam levar a uma escalada no confronto que possa levar a falhas de interpretação perigosas", disse Zhang un, acrescentando que a contenção é também exigida aos países terceiros, especialmente aos que se apresentam como aliados de um ou do outro lado.

O embaixador chinês foi ainda mais longe, naquilo que parece ser um claro recado aos pa"sies ocidentais: "Nenhum país, especialmente aqueles com influência, pode atiar combustível para a fogueira e escalar as tensões, muito menos o podem fazer aqueles que pretendam beneficiar desta crise para ganhar terreno nas suas próprias agendas estratégicas".