Muito distante de Cabo Canaveral e suficientemente afastada da lua por protecção divina, fica a nossa pacata cidade de Novo Redondo, declarada solenemente como irrenunciável terra-mãe de todos os kamussumbes espalhados pelo mundo. No bairro da Assaca, onde vivemos, não existem cientistas, mas naquele dia estava a acontecer algo com a mesma grandeza emocional da viagem do Homem à lua. Foi um dia inusitado.
No bairro, já cintilam os primeiros raios de sol. Mamãe está tão feliz, até parece uma rainha de carnaval, de braços abertos, distribuindo beijos e sorrisos. Tampouco repreendeu a Lucinda quando desceu ao quintal, em razão das habituais omissões aos deveres domésticos da afilhada e que nunca escapavam ao seu severo escrutínio. Lá fora, existe gente nossa a cantarolar bom dia aos passantes, vassoura gentia em punho, esquadrinhando com borrifos de água o quintal de terra batida. -"Vejam só: os porcos da vizinha comeram novamente a meia barra de sabão que a Lucinda deixou na selha da roupa. A Lucinda já quer namorar e agora esquece tudo". Mamãe, entretanto, alerta: "Atenção, hoje ninguém vai tirar satisfações, é um dia especial, uma discussão pela manhã pode virar desgraça logo à tarde".
Velhos vultos conhecidos pelo trote da nossa pobreza colectiva começam a deslizar bondiamente pelos carreiros da praça do keteke. As pessoas buscam lenha para preparar o mata-bicho, uma caneca de café com pão barrado por um cubo de margarina vaqueiro. É tudo quanto um serviçal necessita para ir ganhar o dia e pagar o imposto geral mínimo para não levar porrada dos implacáveis cipaios, uma milícia indígena criada pela máquina colonial para reprimir os seus próprios irmãos. Mas isso é outra política de que um dia falaremos. Hoje, estamos em Novo Redondo, no mês de Natal de 1968, e estamos a viver um ambiente festivo em nossa casa.
Apeada da cama desde cedo, mamãe gira como um pião pelos dois quartos da casa, despertando cada um dos três filhos, enquanto vai tacteando com voz doce o fado ciumento de Amália. Cantava sempre esse fado amargurado, enquanto alisava suavemente com ferro a carvão as nossas surradas peças de roupa. Ela está assaz feliz neste dia de Dezembro. É tão genuína a sua alegria. Tudo flui através dos seus contagiantes sorrisos que, tendo iniciado de manhã cedo, foram ecoando até à hora em que saímos de casa, com direito a carro e motorista. Lotamos a cabine da carrinha fechada do BTSA, rumo à marginal de novo redonda. Até a vizinha alcoviteira, com a qual mamãe rivalizava com frequência diária nos xingamentos próprios dos antanhos kamussumbes, nesse dia ela arrastou as chinelas de plástico pelo chão de terra, para se despedir da caravana. Mamãe vai rindo também de caxexe, mas sempre de ouvidos atentos às pronúncias da intrusa. Não ia ela aproveitar o bulício e soltar uma praga que mamãe não percebesse de imediato, para ripostar em conformidade, como mandavam as nossas rígidas regras contra invejas e mau-olhado.
Naquele tempo, as normas de vida estavam escritas num livro que, na verdade, eu nunca li, mas aprendi-o de cor e salteado. Na nossa comunidade, não obstante existir o dever de cordialidade para com as visitas, os radares devem estar permanentemente accionados por causa dos feiticeiros. Nesta vida, tem gente tão má como as surucucus. Muitas vezes, vocês vão cruzar com elas, alertava-nos amiúde. E mamãe não era propriamente uma pessoa burra, apesar de só ter estudado a 3.ª classe. Muito pelo contrário. Se fosse possível fazer uma transposição temporal, a nossa mãe era muito mais fiável do que a maioria dos actuais satélites de Meteorologia.
Passado mais de meio século, recordo tão bem como tudo aconteceu naquele que seria um dia de alegria para nós. Há coisas na vida que não se esquecem de qualquer maneira. Mamãe estava tão radiante que o sol poente do Inconcon cabia inteiramente no seu peito exuberante, protegido por um quimono de panos floreados, feito pela inesgotável paciência das mãos da avó Ema. A eterna devoção da nossa família era a festa de carnaval e a magia do nosso grupo, a Fineza do inconcon. Até hoje, distingo aquele som enigmático da percussão a adentrar em força pelas artérias e chegar ao coração. Repentinamente, vejo-me a correr como se estivesse na meninice, perdido no meio da multidão hilariante, ao pé da loja do senhor Rocha e depois buscar tremulamente o amparo das cálidas mãos da mãe querida.
Após seis meses como empregada de limpeza no Banco Totta Standard de Angola, mamãe fora convidada para participar na festa de fim de ano, exclusivamente destinada aos trabalhadores e seus filhos menores. Satisfeita como poucas vezes, foi levantar a crédito umas calças curtas e um par de quedes para mim. A carrinha veio a horas e levou-nos sob aplausos da nossa gente. Atravessámos a cidade para a marginal e parámos em frente do Praia Hotel, um edifício azul, bordejado por coqueiros de meia altura, que noutros dias invadíamos para roubar cocos e chupar o suco e a ranheta da polpa mal formada. Mas hoje era dia especial. Lá dentro há uma festa muito "chic". E nós, os do bairro, estávamos convidados.
A festa corre a mil maravilhas, sobretudo após eu ter ganho no sorteio um lindo carrinho vermelho de pedais. Havia outros prémios, mas aquele era o mais apetecido pelos rapazes. Deus quis que fosse eu a ganhá-lo e a sorte sorriu para mim, num sorteio limpo e transparente. Dizem-nos que vão encaixotar o brinquedo para facilitar não sei o quê. Eu estou na expectativa e peço à mamãe que nos fôssemos logo embora para o bairro, mal tivéssemos o prémio em mãos. Havia um cheiro de trapaça a começar a pairar no ar. Comecei a ficar preocupado, algo de estranho se passava no salão de festas, apesar de se continuar a ouvir obladis e obladás e alguns estarem a dançar.
Mamãe tinha sido chamada à mesa da gerência, e eu, de pronto, esgueiro-me para lá. Vejo um menino branco chorar desalmadamente, como se fosse o próximo na fila da vacina. Quando me viu abraçar a cintura da minha mãe, ele aumentou o volume do berreiro até ficar vermelho como um tomate maduro. Subitamente, começa a limpar as lágrimas e a ranheta com as costas da mão esquerda e ergue o indicador direito para mim: -"É ele papai, é ele que ganhou o meu carro". O gerente, que era o pai do "kalomatia" chorão, não dizia uma única palavra. Um outro chefe que estava ao lado e tinha uma cara parecida com um assobio levanta a mão esquerda e proclama:-"Já temos a solução para o problema. O filho da D. Teresa vai receber outro brinquedo para o menino não chorar e, em contrapartida, a D. Teresa vai levar para casa os bolos que sobrarem da festa". Ponto final! E assim foi feita a "justiça" deles, de nada valendo a minha contrariedade. Eles eram os donos de tudo, até dos nossos próprios direitos. Pouco tempo depois, estamos a desembarcar em casa. Mamãe espalha os bolos na mesa e chama a rapaziada do bairro. Em segundos não sobra um único bolo vivo. Todos parecem felizes sem conhecer o drama ocorrido no Praia Hotel.
Incrivelmente, exactos 53, o mesmo cenário de chantagem está montado. Com o mesmo propósito de nos retirarem algo a que temos direito. Desta feita, o actor e encenador é um menino negro de cara bolachuda e voz sibilina. Entre os perdigotos que vai expelindo quando fala, saem-lhe flocos de algo que está sempre a mascar. Os seus olhos são estranhamente frios e maliciosos. O menino levanta peremptoriamente a mão direita, aponta o dedo acusador para mim e balbucia entre perdigotos de quicuanga : - "O teu carro é meu! Aqui tudo é nosso! E desta vez nem bolos levas".
Mamãe, sei que o teu sábio conselho seria o de me fazer entender a maldade como uma desgraça humana que nasce no coração das pessoas por obra e graça do demónio. Faltas tu, mamãe Candinda. Regressa do teu sono eterno. Agora é tudo deles. Desta vez, nem o bolo podemos levar para o nosso humilde bairro e festejarmos com todos os outros.
*Jornalista e Advogado