O fenómeno, por analogia, lembra-nos o título do romance, Este País não é para Velhos, de Cormac McCarthy, escritor norte-americano, livro vencedor do prémio Pulitzer, levado para o cinema pelas mãos dos irmãos Cohen (Joel e Ethan), filme com o título homónimo, soberbamente interpretado por Javier Bardem, Tommy Lee Jones e Josh Brolin.
A velhice, em Angola, parece ter perdido o valor simbólico e social que teve no passado. Longe ficaram os tempos em que os mais velhos eram referências, fonte de sabedoria, voz de respeito. Hoje são, para muitas famílias, um peso a evitar. Não faltam histórias de idosos deixados ao abandono, desprezados ou mesmo expulsos de casa. É um retrato duro, mas real.
Em Pedaços da História (2018), da ensaísta angolana, Kátya Santos, esse cenário é registado com clareza. O livro recolhe testemunhos de idosos acolhidos no Lar do Beiral, em Luanda. Maria de Brito, natural do Uíge, 62 anos, relata com amargura: "Me abandonaram na rua e com aquela chuva toda, a TPA apareceu por lá, levou-me no MINARS e daí vim parar aqui". Morais Pascoal Francisco (ex-militar), natural de Malange, 76 anos: "Sem amigos você não presta para nada. Desde 2003 que ninguém me conhece. Estou aqui, na hora da comida, vou comer; e quando acabo de comer, vou descansar".
Joana André, natural de Icolo e Bengo (não sabe a data do seu nascimento): "Lá em Catete eu trabalhava na lavra, punha as batatas, mandiocas, tudo. Comia e vendia. O marido morreu há muito tempo. A família toda era de lá. Já tenho netos, bisnetos. A mãe deles também já é avó". Barros Gabriel, natural de Luanda, 80 anos, recorda das altercações coloniais: "Acompanhei o massacre de 1961. Acompanhei o massacre das cadeias. Nós já éramos filhos assimilados, já trabalhávamos, já tinha os meus estudos. Era formado". São fragmentos de vidas marcadas por escolhas difíceis e destinos muitas vezes trágicos.
Dados recolhidos estimam que o País tem apenas 17 lares de terceira idade, distribuídos por algumas províncias. No total, acolhem cerca de 900 idosos - um número irrisório, face à dimensão do problema. O Moxico tem quatro, o Huambo três, e Luanda apenas um. "Em muitos desses espaços, a realidade é penosa. As condições são mínimas, o acompanhamento médico escasso e a alimentação deficiente. Há relatos de doenças próprias da idade, como hipertensão ou reumatismo, a conviver com casos de tuberculose por má nutrição", denuncia o Frei Moisés Lucondo, num estudo subordinado ao tema da terceira idade.
Para o antigo pároco de Nossa Senhora de Fátima Frei Moisés Lucondo, muitos desses centros não são verdadeiros lares. São apenas edifícios com idosos dentro. E alerta para a necessidade de uma fiscalização mais apertada. Mas o problema vai além da estrutura física. É moral e humano. Estamos a falhar colectivamente no cuidado a quem mais precisa.
Instrumentos internacionais, como os Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas (1991), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, e a Agenda 2030, recomendam a inclusão e protecção dos mais velhos. A União Africana também tem directrizes claras sobre o envelhecimento digno. Esses compromissos foram assumidos, mas na prática pouco mudou. Os direitos dos idosos continuam a ser ignorados todos os dias.
A responsabilidade de reverter este cenário é principalmente do Governo - reforçando políticas públicas eficazes e sustentáveis. Ademais, as empresas, as igrejas, os profissionais de saúde, os líderes comunitários e a sociedade civil, em geral, têm um papel activo a desempenhar. Os empresários podem apoiar lares, criar iniciativas de apoio domiciliário, financiar acções de saúde preventiva e campanhas de valorização do idoso. As instituições religiosas devem manter viva a cultura do respeito e da proximidade. A sociedade civil e os meios de comunicação devem continuar a dar visibilidade ao tema, não apenas em datas comemorativas, mas como parte do debate público permanente.
Um país que abandona os seus velhos não é um país preparado para o futuro. A juventude de hoje é a velhice de amanhã. E o que agora se faz - ou se deixa de fazer - será um reflexo do que nos espera. Atribuir à crónica o título figurativo Este País não é para Velhos, numa alusão ao romance de Cormac McCarthy, não é apenas uma frase literária. É uma constatação cruel da realidade. Mas pode, também, ser um ponto de partida para a mudança.
*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto