Entendo que as deformações da economia angolana derivam essencialmente de duas questões transversais: i) a nossa opção política de início, Marxismo-Leninismo (nem sempre há coragem de assumir as consequências dessa opção nas escolhas económicas) e ii) o impacto da prolongada guerra civil. A opção política de início teve um papel preponderante, porque determinou o tipo de propriedade dos meios de produção. Ainda hoje, algumas dessas peculiaridades da economia marxista-leninista influenciam ou fragilizam as tentativas de reformas, como é o caso, por exemplo, da propriedade da terra, que segundo os artigos 15.º e 98.º da Constituição da República (CR), a terra é propriedade original do Estado. Sem sombras de dúvidas, a guerra contribuiu imensamente para introduzir deformações na economia, ao ter consumido desmedidamente os recursos financeiros e humanos ao longo de 27 anos, destruindo as infra-estruturas e dificultando a mobilidade de pessoas e bens no território nacional. As deformações requerem acções para serem corrigidas, ao que se convencionou chamar de reformas económicas, mesmo em plena guerra, sob as quais pretendo dissertar no presente artigo.
Em 1987, quando foi lançado o Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF), era ainda estudante do 2º ano do curso superior de economia na Universidade Agostinho Neto (UAN), numa concorrida palestra no Petro Atlético do Huambo, proferida pelo Dr. Eduardo Severim de Morais (em memória), apresentou eloquentemente as deformações da economia angolana da altura e as linhas mestras do SEF para as reverter. Foi muito aplaudido, confesso que nesta altura, dava os primeiros passos em matérias económicas, fiquei-me pelo entusiasmo transmitido pelo palestrante e dos colegas mais velhos que já estavam nos anos finais da sua formação. Entretanto, disse-se em bom tom nesta palestra que o programa visava reverter as altas taxas de inflação (o que não era aceite com normalidade). Apesar das evidentes distorções, do fraco crescimento económico, do florescente mercado paralelo (vulgo kandonga), não havia um reconhecimento oficial da sua existência. Estou recordado de um colega que numa aula de economia falou aos seus estudantes sobre inflação, tendo corrido o risco de ser crucificado pelo partido, que magistralmente foi salvo, pelos pronunciamentos, primeiro do então Presidente da República, que no discurso de lançamento do SEF, confirmou a existência de altas taxas de inflação e a palestra do Dr. Severim de Morais, veio apenas reconfirmar, tendo assim o colega sido salvo, da guilhotina partidária.
A partir desta altura passou-se a reconhecer que havia, de forma geral, instabilidade macroeconómica (fraco crescimento económico, elevadas taxas de inflação, altas taxas de desemprego, e essencialmente, o mercado paralelo como ponto de referência do consumo), que era necessário reverter. Foi o SEF, que bem dizer, reconheceu que a economia baseada na propriedade pública dos meios de produção e do planeamento centralizado, tinham fracassado e então se impunha a adopção de reformas profundas, fundamentadas nos pressupostos advogados, 2 anos depois (1989) pelo economista britânico John Williamson, assente em 10 pressupostos: 1) disciplina fiscal; 2) redireccionamento dos gastos públicos para áreas de alto retorno social (educação, saúde, infra-estrutura); 3) reforma tributária ampla; 4) liberalização financeira (juros determinados pelo mercado); 5) taxa de câmbio competitiva; 6) liberalização comercial; 7) promoção do investimento directo estrangeiro; 8) privatização de empresas estatais; 9) desregulamentação; e 10) garantia de direitos de propriedade. Por consequência, seguiu-se a adesão de Angola às instituições financeiras internacionais de Bretton Woods, nomeadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM).
Mas o Marxismo-Leninismo estava profundamente enraizado no seio do Partido único governante, em que se acusou os mentores do SEF de ameaça dos ganhos da revolução, sentiu-se uma certa retracção do euforismo inicial das reformas. Na sequência das suspensões em torno do SEF, foi lançado o Programa de Recuperação Económica (PRE) entre 1989 e 1990, como uma primeira fase de aplicação do Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF), mais alinhadas com a linha dura do Partido. No entanto, foi rapidamente interrompido em Maio de 1990, devido à nomeação de uma nova equipa económica, que assumiu orientações diferentes. No mesmo ano foi lançado um outro programa de reformas, o Programa de Acção do Governo (PAG), em 1990. Este programa teve carácter de emergência, focado no combate à inflação, com controlo da massa monetária em circulação e a introdução de reformas monetárias significativas, como a chamada troca de moeda em Setembro de 1990, que foi mais ou menos até as primeiras eleições de 1992.
Creio que o essencial a reter nas iniciativas de reformas iniciadas em 1987, mas cuja implementação foi tentada em 1989, visou a reversão do quadro de altas taxas de inflação, de controlar as contas das nacionais, de redimensionar o sector empresarial público e na tentativa de controlar a economia paralela, que estava florescente. Esta fase marcou a percepção de os servidores públicos terem despertado para uma realidade em que veio a revelar-se, como veremos nas próximas reflexões, detrimental para a economia nacional, que é de apropriação indevida do património público, o que levou ao quase desmoronamento do património herdado do colonialismo português, tais como fábricas e fazendas agrícolas.
Este património herdado do colonialismo português que se pretendia retornar para o fórum privado, em consequência de as pessoas terem percebido que seriam abandonadas, caso não preparassem a sua própria reforma, deu na privatização desordenada de empresas, outras foram perdidas nas arruaças do conflito pós-eleitoral de 1992. Até 1992, algumas indústrias ainda estavam operacionais, embora dependentes de matérias-primas importadas. Algumas dessas indústrias foram redimensionadas em benefício de pessoas que não tinham experiência de gestão, tão pouco conheciam a história do negócio e/ou dos fundamentos do mercado daquela indústria (qualquer negócio existe para resolver um problema de um consumidor). Por exemplo, existia uma fábrica de embalagens em Benguela, o ramal do Caminho de Ferro de Benguela (CFB) se estendia até a doca de carregamento do armazém, nesse mesmo eixo ferroviário, havia uma fábrica de papel (a Companhia de Celulose do Alto Catumbela) que fornecia papelão, a principal matéria-prima das embalagens, o mercado eram as indústrias do Huambo e de Benguela, que simplesmente eram o segundo e o terceiro parque industrial do país, antecedidos do parque industrial de Luanda e um grande parque pesqueiro, que consumia o produto final (as embalagens). Portanto, havia uma razão para a sua localização naquele perímetro, que com a paralisação da Companhia Celulose e do estrangulamento do CFB e dos principais consumidores, aquela fábrica deixou de ter razão de existir naquele lugar especificamente.

Veremos que os factores estranguladores da economia angolana são os mesmos desde as primeiras tentativas de reformas, como teremos a oportunidade de demonstrar nas reflexões que se seguirão. A instabilidade macroeconómica, com a variação de preços (inflação) a dominar, sendo, ainda hoje, o que tira o sono aos decisores de política económica. A pergunta que não se quer calar, é, por que é que, as reformas económicas não têm sido bem-sucedidas? Será que têm sido utilizadas prescrições erradas? Continuarei a reflectir sobre as reformas no próximo artigo, no qual terei a oportunidade de dar a minha perspectiva das reformas após 1992.

*Economista