Depois deste fim-de-semana tão bom e tão prolongado, profusamente regado (de chuva, entenda-se!), fui brindado no retorno ao escritório com uma estória mirabolante, que o pessoal de serviço, que ali tinha ficado, testemunhou.

Num dos dias, ao fim da tarde, saiu uma cobra do quintal onde se erigiu o novo templo. Os pobres ofídios, nestes espaços outrora verdes, têm cada vez menos onde ficar em paz e, provavelmente cansado dos sermões, decidiu mudar de pouso. Bem, esta é a descrição naturalista e racional que eu faço, pois outras, com o decorrer da narrativa, não vão deixar de nos acorrer à mente! Uma cobra, portanto, saiu por baixo do portão do quintal e assustou um motociclista, que a viu a tempo e dela se desviou. Ainda assustado avisou um transeunte, que se predispôs a pôr fim à existência do animal, tão incompreendido, mas, por falta de instrumentos adequados - nem paus, nem pedras, nem pedaços de toco havia no caminho-, apenas a espantou, tendo-se ela refugiado num terreno próximo.

No quintal, ficaram dois fiéis, jovens, que tinham como missão fazer o serviço de guarda. É conveniente, pois está mais que provado que só a guarda divina não é suficiente, nestes tempos de tantos pecadores.

Com o decorrer da noite, um deles foi deitar-se, certamente dentro de um programa de revezamento combinado com o colega de vigília. Enquanto dormia, segundo o relato circunstanciado de quem me relatava o acontecido, o sentinela foi à cozinha buscar uma faca, sorrateiramente se aproximou do inocente que dormia a sono solto, e desfechou-lhe uma facada na cabeça, certamente dura, pois não só não foi o suficiente para o matar, como fez com que a lâmina se dobrasse. Estremunhado, mas num ápice, levantou-se o atingido, e fez frente ao agressor - o que demonstra uma grande presença de espírito -, pregando-lhe, na refrega, uma dentada numa orelha - que praticamente a decepou -, fazendo fugir o malfeitor. Este, desembestado, saltou o muro, e corria, perseguido, os dois escorrendo sangue, certamente não abençoado, até que a vítima estacou.

O malfeitor gritava:
- O diabo, foi o diabo que me tentou!, mas deu às da vila-diogo, ficando o jovem com a cabeça a sangrar, sem saber o que fazer.
Atendido, foi para o hospital e, apesar de não se ter a certeza do culminar de todas estas desgraças, quero acreditar que estará bem. O agressor, com meia orelha, certamente será facilmente localizado e levado à justiça, terrena e divina, para explicar que diabo o induziu a tão selvático acto.

Eu não pude deixar de pensar que algo está mal no sermão da vizinha igreja, pois deveriam ser actos de amor, apesar da voz irada do pregador, que dali deveriam jorrar, e não violência e sangue.
Ou foi a cobra?