A Comissão Económica do Conselho de Ministros aprovou, em reunião de 14 de Agosto de 2024, orientada pelo Presidente da República, João Lourenço, o Relatório de Execução do Orçamento Geral do Estado (OGE) referente ao II Trimestre de 2024. A leitura superficial do referido documento deixa transparecer a ideia de que as finanças públicas seguem uma trajectória de sustentabilidade. Entretanto, a análise mais aprofundada dos números apresentados leva-nos a concluir que o grau de irresponsabilidade fiscal atingiu níveis preocupantes e que reverter essa tendência requer a formulação e implementação de um conjunto de reformas estruturais dolorosas e disruptivas, para a qual a Equipa Económica (EE) do Executivo de João Lourenço não parece estar à altura.
Importa referir que no nosso artigo de opinião publicado neste jornal, em Novembro de 2023, alertamos para o facto de que a sustentabilidade do OGE 2024 era assaz questionável e que existia um elevado risco de incumprimento para com as principais obrigações do Estado. A verdade é que as dificuldades registadas no pagamento dos salários da função pública referente ao mês de Julho de 2024 e a recente afirmação de um alto responsável do Ministério das Finanças (MINFIN) sobre a existência de um risco de novos atrasos só vêm confirmar o que havíamos previsto, o que reforça a nossa visão apocalítica da condução da política económica, em particular, a irresponsável gestão das finanças públicas.
Ora vejamos,
No II Trimestre de 2024, foram arrecadadas receitas no valor de 5,45 biliões de kwanzas e realizadas despesas no valor de 4,63 biliões de kwanzas, tendo sido registado um saldo orçamental na ordem dos 823,51 mil milhões de kwanzas. Por si só, diríamos com satisfação que a execução do OGE 2024 referente ao 1.º semestre foi positiva. No entanto, como se diz na gíria popular, "o diabo está nos detalhes". Para análise mais cuidada da sustentabilidade das finanças, apresentamos um mapa de entradas e saídas referente ao 1.º semestre 2024, decomposto por receitas e despesas do Estado, em moeda nacional e estrangeira, uma vez que uma parte significativa do OGE é executado em dólares americanos.
As entradas em moeda estrangeira, predominantemente receita petrolífera, foram de 4,53 biliões de kwanzas, enquanto as despesas em moeda estrangeira, predominantemente serviço da dívida externa, foram 2,74 biliões de kwanzas, o que permitiu libertar 1,72 biliões de kwanzas para financiar outras despesas do OGE através da oferta de divisas no mercado cambial, que por sua vez, certamente, terá evitado uma maior depreciação da moeda nacional. No entanto, o comportamento das entradas em moeda nacional - receita de impostos não-petrolíferos e a captação de financiamento interno - ficaram muito aquém do grosseiro optimismo da EE quando fez aprovar o OGE 2024. As entradas em moeda nacional fixaram-se em 4,24 biliões de kwanzas, enquanto as despesas foram de 6,39 biliões de kwanzas, o que significou um défice no valor 2,15 biliões de kwanzas. Ou seja, os proveitos provenientes do bom desempenho tributário no sector petrolífero (57,7% face ao previsto no OGE) não foram suficientes para cobrir a paupérrima execução da tributação não-petrolífera e da fraca captação de financiamento interno através da emissão de bilhetes e obrigações do tesouro nacional (39,7% face ao previsto no OGE).
O bizarro optimismo da EE sempre esteve patente na equivocada projecção do crescimento real do sector não-petrolífero e da evangélica crença de que o mercado bancário nacional continuaria a comprar títulos do tesouro nacional indiscriminadamente face ao risco de incumprimento (default risk) por parte do Estado. A EE não parece ater-se aos princípios enunciados por Barack Obama.
A coalescência de incongruências da EE atinge o seu pior nível quando analisamos o comportamento da despesa no 1.º semestre de 2024. Com a excepção do nível de execução da despesa com os salários (48,2%), todas as outras rubricas apresentam um desempenho com desvios significativos, preocupantes e, até certo ponto, contrários ao próprio Programa de Governação do Executivo sufragado nas Eleições Gerais de 2022. Por exemplo, a execução da despesa com o sector social - que inclui a educação e a saúde - foi de apenas 40,2% do valor previsto no OGE de 2024, os bens e serviços fixaram-se nos 41,4% do valor orçamentado e as transferências (incluindo os subsídios ao combustível) alcançaram apenas 27,5% do que estava previsto. Entretanto, o sector de defesa e segurança consumiu até ao final do 1.º semestre quase 70% do seu orçamento aprovado para o ano. Qual é o racional meus camaradas? A pirâmide das prioridades do Executivo parece estar invertida num contexto de forte descontentamento social. Pasme-se!
Outrossim, o alerta dos altos responsáveis do MINFIN para a possibilidade de ocorrência de novos atrasos no processamento dos salários da função pública tem fundamento, e o risco é de facto elevado. Se considerarmos que a execução do 1.º semestre do OGE 2024 foi salva in extremis pela produção de petróleo bruto ligeiramente acima do esperado e do diferencial do preço do brent, considerando ainda que aproximadamente 66% do serviço da dívida externa prevista no OGE 2024 está concentrada no 2.º semestre de 2024, então, podemos concluir que não haverá receita em moeda estrangeira que poderá ser esterilizada no mercado cambial para financiar as despesas em moeda nacional e que, consequentemente, o kwanza deverá sofrer nova pressão para desvalorizar.
De acordo com o Standard Bank Angola os riscos de inflação ainda são elevados. As taxas de juro reais negativas e o elevado crescimento da oferta monetária (M2) em moeda local, reportado em 29,5% em termos homólogos em Junho, implicam que a política monetária é insuficientemente restritiva. Além disso, o mercado cambial continua a funcionar com um volume significativo de operações cambiais à espera de liquidação. Segundo os dados reportados pelos bancos comerciais, o montante global pendente ultrapassava no final do 1.º semestre os 800 milhões de dólares americanos, o que representava mais de 2 meses de venda de divisas no mercado cambial. Por outro lado, apesar de alguns progressos na reforma dos subsídios aos combustíveis, os preços nas bombas continuam a ser cerca de um terço do que deveriam por forma a lograr eliminar totalmente essa componente ineficiente do gasto público.
Quiçá, a EE do Executivo considere que o cenário de atrasos no processamento de salários, cortes na despesa do sector social, desvalorização do kwanza e a persistência da taxa de inflação em ritmo galopante, não sejam factores críticos para o bem-estar das famílias e da competitividade das empresas nacionais, ao mesmo tempo que se privilegia o gasto no sector de defesa e segurança. Isto é, exactamente, o que o Camarada Presidente e Titular do Poder Executivo (TPE) defendeu no seu discurso na última reunião do Conselho da República quando afirmou que "o sucesso da luta contra a fome e a pobreza não depende do aumento das importações ou da política fiscal e cambial, depende sobretudo do aumento da oferta dos produtos alimentares produzidos pela economia nacional". Quem sugeriu esta frase ao TPE não foi só infeliz, pode ter uma agenda oculta ou não percebe nada sobre economia.
No actual contexto de fortes movimentos de globalização dos mercados e aceleração tecnológica nas principais cadeias de fornecimento (supply chains), a EE do Executivo pretende fazer acreditar ao TPE que o desenvolvimento e o fortalecimento da produção nacional serão alçados sem fazer recurso à importação de matérias-primas e serviços especializados. Por outro lado, segundo os nossos gurus da EE, o rating soberano seria irrelevante para atração de investimento directo estrangeiro (IDE), dai decorrendo que a sustentabilidade das finanças e a estabilidade do mercado cambial não seriam premissas para o relançamento da produção nacional. Essas ideias são alucinantes, perigosas e afastam-se simultaneamente do pensamento económico das escolas neoclássicas, neoliberais e neokeynesianas.
Como disse Napoleão Bonaparte (1769- 1821), que foi um estadista e líder militar francês com grande destaque durante a Revolução Francesa e que liderou várias campanhas militares de sucesso durante as Guerras Revolucionárias Francesas, "as pessoas a temer não são aquelas que discordam connosco, mas aqueles que discordam de nós mas são cobardes o suficiente para que saibamos".
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador