Nunca ninguém tinha levado a música de Angola tão longe, como eles o fizeram. O dueto fora constituido em 1956, quando eles se conheceram e estudaram juntos em Benguela. Em 1959, adoptariam definitivamente o nome de "Duo Ouro Negro", que chegou a integrar um terceiro elemento, o José Alves Monteiro, mas foi por pouco tempo.
Eu era um entusiasta da música do "Duo Ouro Negro", desde as canções dos anos sessenta, que eu ouvia nos programas do meu primo Carlos Alberto na rádio Kwanza-Sul. Escutava temas como "Elisa gomara saia" que minha mãe adorava e outras como "suliram". Mais tarde, já com o Rui Iglésias e o Moisés Kafala entrámos para os meandros do "Blackground" e "Mulowa".
Naquele dia,quando nos encontrámos em Benguela, era a primeira vez que eu o via na minha vida. Conversei com ele cerca de trinta minutos. Foi numa manhã conzenta, após ele ter saído de uma entrevista, na rádio morena. Raul falou-me do projecto que tinha em carteira, para criar uma escola de artes e cultura, virado sobretudo para a juventude. Queria instalá-la na sua cidade do coração, terra das acácias rubras, dos sape-sapes doces e das pitangas maduras, a fim de eternizar o legado do "Duo Ouro Negro".
Bem próximo do local onde estávamos a conversar, havia um curioso edifício de arquitectura colonial. Ficava do outro lado do espaço ajardinado que é hoje chamado de Largo da Juventude. O Raul, apesar de ter nascido na Chibia, já conhecia o imóvel dos seus antigamentes, quando viveu por certo tempo em Benguela, numa casa onde havia um pomar com paus de sape-sape tão doces como uvas da metrópole, paus de pitangas vermelhas de cair-água-na-boca infileirados como soldados e os infalíveis mamoeiros com mamões amarelinhos que faziam as delícias dos jajás, dos catchinjonjos e da irrequieta pardalada que de noite se ia acoitar nos paus de gingolote na vala do Coringe.
Ele convidou-me a visitar o edifício de arquitectura colonial com ele e, postos lá, resolvemos penetrar no imponente hall. O Raul estava incontidamente maravilhado com a imponente escadaria que dava acesso ao piso superior. "Isso é jacarandá, madeira pura do Brasil", Exclamou todo feliz, enquanto tateava sons de batuques que tão bem conhecia, a bater o nó dos dedos no liso corrimão das escadas. Parecia um garoto a pegar em mãos o brinquedo que sempre desejou.
O Raul era um excelente percursionista e estava visivelmente encantado com a acústica que ecoava no interior da escadaria e nas galerias espaçosas. Tudo isso, por causa da madeira de boa qualidade com que era construído todo o interior do imóvel. Essa madeira era oriunda do Brasil nos tempos em que Benguela florescia com o negócio da cera, da borracha e também de homens feitos escravos, isso até quase finais do século XIX, quando já havia sido oficialmente abolida a escravatura. Ainda andaram por aqui escondidos nas reentrâncias da baía do Lobito, navios que continuavam a embarcar clandestinamente escravos para o outro lado do mar.
Na época mais florescente do negócio do mel, da cera, borracha, exportados por intermédio dos armazéns da alfândega e da ponte cais na praia morena, onde atracavam uns navios, enquanto outros fivavam ao largo, à espera dos batelões com as cargas. Do Brasil, para além da madeira, vinham também pequenas barricas e garrafas contendo uma pinga feita com a garapa da moenda de cana-de-açúcar nos grandes engenhos. Em determinada altura, as autoridades não permitiam o fabrico de alcool a partir da cana, para não deixar cair o negócio da importação da aguardente brasileira. Como o homem fica teimoso quando lhe cortam a pinga, dois indivíduos resolveram montar o negócio na Catumbela e asswim nasceria a famosa Kassequel. Assunto para outras abordagens, se não me cortarem a pinga da motivação.
Estava com o Raul Indipwo, a visitar um imóvel de arquitectura colonial, em Bemguela.
- "Vamos dividir isso. Numa parte fica a academia de música e a outra serve para a galeria de artes como a escultura e a pintura", disse-me. Falou-me que pretendia integrar várias artes ali, nomeadamente a pintura e escultura e um auditório para a música. Seria uma casa de cultura aberta para todos os artistas. Fiquei a saber que ele tinha isso como um desejo do fundo do seu coração. Pretendia instalar ali, na sua Benguela dos matrindindes pernilongos, a "Fundação Ouro-Negro".
Havia agora que lutar contra a burocracia da administração pública, para conseguir o imóvel. O Raul confiava que as autoridades o ajudariam, porque o imóvel era propriedade do Estado que o tinha confiscado aos antigos proprietários, que tinham abandonado Angola em 1975, por alturas da independência.
O Raul estava maravilhado com o simbolismo em tudo o que encontrava naquele edifício. Olhava sorridente e sonhador para todos os lados. Enquanto passava as mãos pelo parapeito suave das escadarias, voltava a dar pancadas em contra-tempo obtendo um som de percussão africana. Creio que, lamentavelmente, o seu projecto não foi bem entendido por quem, na altura, dirigia o ministério da Cultura. Naquele tempo, sem um apoio institucional efectivo, era impossível implementar o que quer que fosse.
Assim, num dia triste, em 4 de julho de 2006, com 72 anos de idade, o Raul "Ouro Negro" partiu para a última viagem. O seu sonho ficaria adiado. Mas vimos antes o edifício ser cedido a um particular que ali instalou um colégio. Foram realizadas obras que alteraram profunda e irremediavelmente a estrutura arquitectónica centenária do imóvel.
Pronto, mas isso são contas de outros rosários. Creio que o sonho de Raul Indipwo apenas ficou temporariamente adiado. Um dia ele se concretizará na sua terra querida, porque o legado do "Duo Ouro Negro" é imortal.
*Advogado e jornalista.