E não sendo cega, a cidadania não suporta mais os autoflagelamentos de um polícia descontrolado que se deveria resguardar na relação com a Igreja Católica - uma instituição que sozinha reúne mais fiéis do que todos os partidos juntos - e não dar a entender que se calhar não sabe o que diz...
Por essas e por outras, assumindo responsabilidades distintas e colocados no mesmo prato da balança, é que o desempenho do Governo e o da oposição não podem ser avaliados pela mesma bitola.
Quem governa tem, desde logo, de perceber que, por ser governo, está muito mais exposto ao escrutínio crítico da opinião pública do que a oposição. Quem está na oposição, por sua vez, por não ser governo, sem estar livre do crivo da imprensa, conta sempre com o benefício da dúvida.
Quem governa, por sofrer os efeitos do desgaste provocado por longos anos de permanência no poder, se não mudar rapidamente de agulha, arrisca-se a ver entrar em debandada muitos dos seus tradicionais aliados.
Quem governa, se não corrigir rapidamente o tiro e se não deixar de disparar a torto e a direito para dentro, corre o risco de acentuar focos de cisão interna e de desmobilizar aqueles que, lá dentro, ainda depositam uma réstia de esperança no resgate da confiança perdida.
Quem governa, se insistir em continuar a apostar numa navegação à vista, não será capaz de perceber que a onda de descontentamento social e de contestação às suas políticas e à (falta de) postura de alguns dos seus agentes não se polarizará apenas na UNITA, mas arriscar-se-á a assistir ao seu alastramento a vastos segmentos da sociedade civil desencantados com o actual rumo do País.
Quem governa tem ainda de se livrar de governantes especializados na arte de driblarem o detector de mentiras ou na arte de incentivarem os cidadãos a colocar debaixo do tapete a porcaria acumulada pela governação, como fez esta semana em Lisboa o ministro da Administração do Território, Marcy Lopes. Esta foi a borrada semanal do MPLA. Mais uma. O MPLA que se prepare...
É claro que não sou daqueles que acreditam que os militantes e simpatizantes do MPLA desertaram ou vão desertar todos. Não. Também não sou daqueles que acreditam que aqui não se passa nada, que está tudo bem e que vai ficar tudo na mesma, e que não é preciso fazer nada. Não sou ainda daqueles que acham que o desencanto é ilusão potenciada pelos que têm acesso às redes sociais.
Seja o que for, quem governa tem de perceber, no entanto, que os cidadãos se vão revelando cada vez mais cansados de promessas à esquerda e à direita as quais, de tão gastas e eivadas de ar, já não chegam para pescar à linha os milhares de jovens descontentes que, saídos das universidades, aterram num deserto cheio de desemprego e vazio de anseios e de aspirações.
Ora, piscando os olhos para esses anseios e aspirações e empurrada pelos disparates do MPLA, ao constatar que nunca esteve tão perto de ocupar os aposentos da Cidade Alta como agora, o que, de forma inteligente, a UNITA deverá fazer é provisoriamente colocar de parte as desavenças domésticas e cerrar fileiras em torno do reforço da sua coesão interna e do incremento do apoio à liderança de Adalberto Costa Júnior.
Com a democraticidade interna fantasiada, em contrapartida, é tempo de João Lourenço saber que vive num reino carregado de muita hipocrisia e de muito cinismo. É tempo de saber que os seus colaboradores mais próximos só não denunciam, em voz alta, o que se passa dentro desse reino porque vivem atormentados pelos seus medos e fantasmas.
E são esses medos e fantasmas que, secando como o eucalipto à frescura das mentes lúcidas que gravitam em redor do poder, estão agora a empurrar o MPLA para uma gloriosa caminhada rumo ao desastre político.
Lá dentro tudo parece ser um mar-de-rosas e só se conhecem momentos de exaltação ao Presidente. Lá dentro todos ou quase todos só dizem o que agrada a João Lourenço, mas, nas suas costas, livres ocasionalmente de fantasmas e de medos, todos ou quase todos não deixam de ser os primeiros a acusá-lo de ser teimoso, impulsivo e de não querer dar ouvidos a ninguém.
Lá dentro todos ou quase todos aplaudem o estilo de concentração de poderes de João Lourenço, mas, nas suas costas, libertos momentaneamente de medos e de fantasmas, todos ou quase todos defendem a libertação de mais espaço de intervenção para o Vice-Presidente da República, designadamente na esfera da educação.
São os eternos medos e fantasmas instalados nas casernas do regime, que estão também a fazer agora com que, lá dentro, os colaboradores mais próximos de João Lourenço estendam o tapete vermelho ao chefe dos Serviços de Inteligência, mas, nas costas de ambos, esses mesmos colaboradores não hesitam em manifestar a sua apreensão política face aos alegados excessos de poderes securitários que dizem ter-lhe sido atribuídos pelo Presidente.
São esses medos e fantasmas que estão a fazer com que, lá dentro, os colaboradores mais próximos de João Lourenço se mostrem sorridentes diante da ministra da Saúde, mas, nas costas de ambos, esses mesmos colaboradores não se cansam de a acusar de ser arrogante e de ter "as costas quentes" por alegadamente ser protegida do Presidente.
São esses medos e fantasmas que estão a fazer com que, lá dentro, os colaboradores mais próximos de João Lourenço prestem cínicas vénias ao antigo presidente da Comissão Administrativa de Luanda, mas, nas costas deste, não deixam, de forma contundente, de reprovar o seu perfil.
E de censurar a associação à imagem do Presidente da figura de um comissário de bairro, portador de uma visão tão assustadoramente rudimentar, que, de tão inculta, atrasada e incivilizada, se está a tornar num perigoso foco de vulnerabilidade para o MPLA na disputa política com a oposição liderada pela UNITA.
Os medos e fantasmas que rodeiam o Palácio não conseguem, porém, afastar da governação de João Lourenço o mesmo síndrome que, durante anos, também perseguiu e pôs em causa a governação de José Eduardo dos Santos: a sombra incontrolável das agendas paralelas dos respectivos colaboradores.
Este Presidente - como o anterior Presidente - afinal, pode não ter ao seu lado os (verdadeiros) amigos de que necessita e que muita gente enganosamente pensa que se comportam como seus aliados...
Como é que, perante este imbróglio político, o Presidente vai então libertar-se da teia de medos e de fantasmas que enredam o regime e fazer com que o MPLA deixe de acertar em cheio no desespero?
Chegar aqui pressupõe, desde logo, reconhecer que nunca como agora o MPLA esteve tão à beira de perder a hegemonia do poder em Angola. Logo, nunca como agora também o aprofundamento da abertura e do debate democrático interno foi tão necessário para ajudar a reconstruir a sua identidade e a devolver a esperança a uma franja significativa de militantes que perdeu a crença no partido.
Encaixotado num ambiente de claustrofobia democrática, ao MPLA não parece agora restar outra via senão a de responder ao repto da oposição com uma campanha em torno da reunificação da sua "Grande Família" que seja capaz de apanhar os cacos que estão a dilacerar a sua vitalidade.

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