José Maria Neves, ex-primeiro-ministro (2001-2016), concorreu apoiado pelo seu partido, o histórico PAICV (esquerda), tendo como adversário principal Carlos Veiga, também antigo primeiro-ministro (1991-2000) pelo MpD (direita), que voltou a perder as presidenciais pela terceira vez, depois de 2006 e 2001.
Neste escrutínio, por sufrágio directo e universal, pela primeira vez Cabo Verde registou sete candidatos a Presidente da República, ultrapassando em quase o dobro o máximo de quatro candidatos de 2001 e 2011.
No entanto, o número recorde de candidatos nestas eleições, as sétimas presidenciais desde a instauração, em 1990, do regime democrático, em vez de contribuir para a afirmação das candidaturas independentes e da cidadania serviram para vincar ainda mais a bipolarização da política do arquipélago.
Com percentagens entre menos de um por cento e pouco mais de um por cento, as ditas candidaturas de cidadania deixaram um amargo de boca aos que defendem um maior envolvimento dos cidadãos na política, fora dos partidos.
Longe do que acontece em várias paragens africanas, logo que conhecida a vitória de José Maria Neves por 51,7%, os resultados foram aceites e o vencedor foi imediatamente saudado pelos adversários e toda a sociedade, sem qualquer drama.
O eleito, num discurso notável, mostrou-se disponível a agregar, afirmando: "Estou pronto para assumir com toda a humildade as responsabilidades do cargo", acrescentando que será um "Presidente amigo, um Presidente parceiro, que une, cuida e protege", em suma um "Presidente de todos os cabo-verdianos e de todas as cabo-verdianas",
A referência ao género por parte de José Maria Neves, ladeado por duas mulheres que foram o cérebro e o coração da sua campanha, mais do que retórica, representa o seu compromisso com a luta pela igualdade de género.
Compromisso posto em prática quando formou o primeiro e (ainda) único Governo cabo-verdiano com mais mulheres que homens, onde se destacavam figuras como Janira Hopffer Almada, actual líder do PAICV, e Cristina Duarte, ex-ministra das Finanças, agora conselheira de António Guterres, secretário-geral da ONU para África.
Para o novo inquilino do Palácio do Platô, a sua eleição é "uma grande vitória do povo de Cabo Verde". E, neste sentido, compromete-se a ser "um presidente que irá sugerir, aconselhar, apoiar os outros órgãos de soberania, particularmente o Governo".
O vencedor promete uma magistratura de diálogo, nomeadamente com os "partidos políticos e sindicatos, as fundações, as universidades e todas as instituições relevantes de Cabo Verde"
Sabendo que será protagonista da segunda coabitação da história democrática cabo-verdiana, José Maria Neves tranquiliza o Governo do MpD ao anunciar que será "um árbitro imparcial, um fiscalizador da acção governamental, um apaziguador de conflitos, um Presidente que irá trabalhar com o Governo, com as autoridades locais e com a sociedade cabo-verdiana para juntos fazermos face aos desafios".
Um Presidente que, sublinha, "irá sugerir, conciliar e apoiar os outros órgãos de soberania, particularmente o governo".
Neves assegura ainda que vai unir os cabo-verdianos das ilhas e da Diáspora. "Somos uma nação diaspórica, um Estado transnacional. Somos todos transmigrantes e precisamos de colocar todas essas competências e capacidades ao serviço da nação global cabo-verdiana", disse.
Porque ser democrata é também ter elevação na hora da derrota e reconhecer o mérito do adversário, o perdedor Carlos Veiga, também num assinalável discurso, na noite eleitoral, sublinhou que "o povo falou e a democracia triunfou", asseverando que, na campanha eleitoral, "foram testados os limites da democracia que, mais uma vez, se renovou e se fortaleceu".
"É um orgulho sentir-me parte do funcionamento da democracia sólida, resistente, consistente que ajudei a criar", realçou Carlos Veiga, acrescentando que "os grandes vencedores das eleições são a liberdade, a democracia e o povo de Cabo Verde".
Na mesma senda, o primeiro-ministro Ulisses Correia, líder do MpD, sublinhou que a eleição de José Maria Neves deve ser respeitada por todos e prometeu uma boa coabitação com o novo Presidente, "para que Cabo Verde ultrapasse a fase difícil que atravessa".
"O povo e os eleitores fizeram as suas escolhas", afirmou o presidente do Movimento para Democracia (MpD), principal apoiante de Carlos Veiga nestas eleições, ao mesmo tempo que disse esperar uma coabitação tranquila "para que Cabo Verde continue a ganhar e em benefício dos cabo-verdianos".
Essa maturidade demonstrada pela jovem democracia cabo-verdiana é também fruto do exemplar processo de transição do regime de partido único para o pluripartidário protagonizado por Aristides Pereira e o comandante Pedro Pires, prémio Mo Ibrahim da Boa Governação (2011) pelo lado do PAICV e Carlos Veiga e Mascarenhas Monteiro pelo MpD.
Maturidade traduzida também no transparente, rápido e eficiente processo de contagem e de divulgação dos resultados eleitorais que, tirando partido das novas tecnologias, permite que qualquer cidadão, independentemente da sua localização geográfica, acompanhe a actualização minuto a minuto dos resultados eleitorais.
Maturidade democrática com reflexos no comportamento da Diáspora que, tal como os cabo-verdianos nas ilhas, fez da campanha eleitoral a festa da democracia, da afirmação da identidade com muita alegria e muita música cabo-verdiana.
Neste contexto, a harmonia e a concórdia foram uma constante na campanha em Portugal, uma das principais praças da Diáspora, onde os apoiantes dos dois principais competidores mostraram que o respeito pelo adversário também faz parte do jogo democrático.
Com tambores, batuques, palavras de ordem e a música em língua crioula, em Portugal onde há 64 mesas de votos espalhados por todo o território continental e ilhas (Açores e Madeira), a campanha sem insultos nem ataques pessoais serviu para mostrar ao eleitorado dois políticos de quadrantes ideológicos e visão diferentes sobre a Presidência da República.
A tolerância política ficou patente quando, na arruda do final da campanha, as duas caravanas se cruzaram na Buraca, um bairro dos arredores de Lisboa, habitado sobretudo por cabo-verdianos, sem que isso provocasse qualquer incidente, fricção, insulto ou mesmo vaia.
Apesar da fractura verificada nas urnas, no seu dia-a-dia, os diaspóricos primam pela defesa do país e da sua cultura em detrimento de ideais políticos, colocando, desta forma, a cabo-verdianidade acima da militância partidária e das opções políticas e ideológicas.
Num regime de parlamentarismo mitigado, ou semipresidencialista fraco, nestas eleições os cabo-verdianos optaram por retirar os ovos de um mesmo cesto, dando a vitória ao candidato apoiado pelo PAICV, equilibrando desta forma, os poderes até aí concentrados MPD que domina o Governo e as autarquias e detinha a presidência.
A eleição de José Maria Neves representa a vitória de um político profissional que, aos 61 anos, tem uma longa carreira de mais de 40 anos de serviço público.
Um cidadão comprometido com o seu país, com a promoção da sua cultura e língua nos areópagos internacionais, como fez em 2011, ao discursar em crioulo cabo-verdiano na sessão da Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque.
Um político, intelectual e académico também ligado à escrita pertencente a uma geração que ofereceu ao país grandes nomes das letras de língua portuguesa e crioula, como o poeta e ensaísta José Luís Hopffer Almada.
Político que, entre o abandono das funções governativas e de liderança do PAICV e a candidatura para as presidenciais, se dedicou à escrita (ensaios e poesia), à investigação com a frequência no ISCTE de Lisboa de um doutoramento em Políticas Públicas.
Um homem considerado papa-eleições, que nunca perdeu uma única eleição para cargos públicos desde 2000, ano da sua primeira vitória eleitoral para presidente da Câmara de Santa Catarina, sua terra Natal.
Cabo Verde escolheu um social-democrata preocupado com as desigualdades sociais na sua terra e que, por isso, adoptou para lema da sua campanha "Juntemos as mãos, a cabeça e o coração" por um "Cabo Verde com Futuro", como dizia o Hino da campanha.
Um político atento e preocupado com os desequilíbrios do mundo, incluindo a desigual distribuição mundial das vacinas contra a Covid-19, e que elegeu como prioridade do seu mandato a reconstrução do seu país no período pós-pandemia.