Como é que entra na poesia?

Eu não escolhi ser poetisa. A poesia é que sempre fez parte de mim em toda a minha vida. Olhando para trás, é mais evidente no momento que ela apareceu. O que sinto é que, nos últimos tempos, tenho partilhado essas minhas inquietações com as pessoas: quem eu sou como poeta, mas a poesia sempre fez parte de mim desde a tenra idade. Quando andava pela rua, acreditava que o barulho que as folhas das árvores faziam eram elas a falar comigo. Era assim que eu via o mundo, com este espanto. E faz parte deste eu poético, de olhar da forma mais crua e ao mesmo tempo tentar imaginar para lá daquilo que é visível.

O que mudou na sua vida, a partir do momento em que começa a ter sucesso?

Penso que ainda não cheguei (ao sucesso) (risos). Quer dizer, vou chegando e então vou traçando novas metas... Eu diria que a visão do que é ser bem-sucedido ou ter sucesso na poesia é meio estranha, porque não escolho o tipo de poemas que vou escrever, olho para o que está à minha volta e penso que me inquieta e vou escrever sobre isso. Provavelmente um dos factores que me traz algum conforto e algum retorno não seja bem um sucesso. Eu diria que, quando temos um grande retorno sobre o nosso poema, como o tema "Poeta", que me traz a Angola, para mim é importante porque várias pessoas se identificaram com o poema.

Por que razão faz questão de ser tratada "poeta" e não poetisa?

Imaginem, uma das minhas grandes referências na poesia é Florbela Espanca (1894 - 1930). Durante o seu tempo, ela era sempre tida como poetisa dentre outros considerados poetas. Penso que também naturalmente como eu me sinto é poeta. Tanto que o tema "Poeta" foi mesmo uma segunda provocação.

Isto não é tentativa de desafiar as regras da língua?

Então, mas nós, como poetas, temos uma licença? Eu gosto muito da poesia precisamente por isso, porque eu, na poesia, tenho várias inquietações dos temas que acabo de tocar, também são um bocadinho provocadores, que é a tal questão de estar a afiar a língua. Acredito que faz bem às pessoas reflectir um pouco sobre o porquê que a Alice é poeta, porque estamos muito habituados a olhar para aquilo que está à nossa volta de uma forma estática.

Os artistas em Angola enfrentam o dilema entre viver da arte ou conciliá-la com outra profissão. Vive da sua arte?

Emocionalmente, de alma, sim. Eu vivo com a poesia e pela poesia, e é isso que me dá força anímica para os meus dias, mas sempre foi isso. Não tem a ver com o olhar do público, não tem a ver com retorno financeiro, agora, se me pergunta se tudo que recebo financeiramente da poesia me permite ter uma vida estável... a poesia dá-me outra possibilidade agora que me abre portas para pensar em começar a fazer isso, mas quem me conhece sabe que sou poeta dentre vários ofícios, eu tenho várias Alices, e também não sinto que vá abdicar delas. Neste momento, também tenho um trabalho a tempo inteiro e, para além desse, vivo a poesia a tempo inteiro.

Dá para conciliar?

O que está a acontecer é que a intensidade que tenho no trabalho (psicomotricidade) já não me permite uma conciliação muito equilibrada ou harmoniosa para escrever, porque escrever é um processo delicado, e as pessoas pedem-me o livro, mas o livro é preciso tempo, é preciso entrega de corpo e alma, e é aí que diria que os outros ofícios já não contribuiriam tanto. Mas eu já tive ofícios, já trabalhei em quase tudo quanto possam pensar.

É a primeira vez em Angola?

É.

O que está a achar?

As pessoas estavam a dizer que eu sentiria uma grande diferença. Eu não sinto uma diferença tão grande. Sinto que me é tudo tão familiar. A escrita, a palavra e a poesia permitem-nos isso. Viajamos muito quando lemos, quando ouvimos música, quando falamos com pessoas que já tiveram cá. A comida também é que comia lá. É-me tudo familiar. Mas agora estou na raiz, com a minha avó, minha família... tudo isso é diferente, mas é bastante familiar.

Não está a ver o sofrimento de que também ouve falar?

Vamos pensar que a partir do contacto com as pessoas em Portugal também há sofrimento. Isso não vou mentir, muita coisa aqui dói-me, mas também lá, só que são aspectos diferentes. A mim, dói-me muito ver as crianças (da rua), porque lá não vejo tanto. Às vezes, os nossos olhos habituam-se a uma certa tristeza... é uma realidade muito crua, há uma certa disparidade, ou se tem muito ou não se tem absolutamente nada, e isso dá-me um choque muito grande.

O que quer dizer "ou se tem muito, ou não se tem absolutamente nada?"

Ao lado de prédios fantásticos, de repente vês ali uma realidade (contrária). Ao lado de algo que supostamente é bastante requintado, estás ali com uma realidade de lixo à volta, ou seja, sinto que tudo que olho aqui à minha volta é muito cru, muito desinibido, às vezes, se calhar, isso existe onde eu estou, mas está um bocadinho mais mascarado. As realidades existem. Coincidem. Existe, se calhar, uma noção crua do sofrimento, mas, por outro lado, as pessoas também cruamente mostram-se felizes. Um dos meus grandes objectivos da visita a Angola, e foi o momento mais emocionante, foi ver a nossa avó materna, a dona Alice Neto, porque vim com as minhas irmãs. Foi a primeira coisa que eu fiz.

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