Este acordo, mesmo sem estar explícito, oferece garantias de segurança para eventuais futuros ataques planeados por Moscovo para as áreas abrangidas, uma enorme vitória para Kiev porque os russos não vão querer arriscar um confronto com os EUA.

Só que há questões melindrosas que as escassas horas que passaram sobre o anúncio ainda não permitiram aos media internacionais dissecar em profundidade, como, por exemplo, a validade de um documento assinado por uma figura de segunda linha do Governo de Kiev.

O documento foi assinado por Yulia Svyrydenko, uma até aqui desconhecida vice-primeira-ministra da Ucrânia e em simultâneo ministra da Economia, de um Governo chefiado por um Presidente cuja legitimidade é questionada, mesmo internamente, porque já devia ter enfrentado eleições em Maio de 2024.

Volodymyr Zelensky protelou a realização das eleições Presidenciais, cujo calendário normal era Maio do ano passado, com a sucessivamente renovada Lei Marcial, o que lhe confere legitimidade de condução limitada dos destinos do país, segundo afiançam alguns analistas.

No entanto, a Presidência ucraniana garante que essa legitimidade não sofreu quaisquer brechas porque isso decorre da Constituição, embora algumas leituras apontem para que em caso de Lei Marcial o poder passa para o Presidente da Rada, o Parlamento ucraniano.

Além desta questão da legitimidade do Governo de Zelensky, o documento, dividido em duas dezenas de pontos, tem, contudo alguns elementos de leitura difícil, porque apontam para a criação de um fundo de reconstrução do país que nos primeiros dez anos garante que nenhum dividendo é desviado para os Estados Unidos.

Este ponto, mesmo que o acordo permita a Donald Trump gritar vitória no imediato, quando o seu conteúdo começar a ser esmiuçado, ver-se-á que retira aos EUA quaisquer meios de reaver os milhares de milhões de dólares requeridos pela Casa Branca na próxima década.

Mais: num dos seus pontos mais controversos, embora a sua inserção se perceba no contexto das dúvidas sobre a legitimidade do Governo de Volodymyr Zelensky, e, por inércia, da figura que o assina, é exigido que o Parlamento se pronuncie e valide todas as medidas nele contidas.

Se os ganhos de Washington são poucos e a existirem serão apenas viáveis dentro de uma década, pelo que se percebe da escassa informação existente, para Kiev este acordo é a loteria ganha com uma aposta simples.

Isso, porque promete o que não pode garantir aproveitando a urgência do Presidente Trump apresentar resultados quando a sua Presidência não está a correr da melhor maneira, seja pela ausência de resultados na mediação da guerra na Ucrãnia, seja na economia, muito por culta da sua guerra mundial das tarifas que abriu uma nova frente de flagelação com a China.

E para a Ucrânia assegura uma protecção, por inerência, que resulta da presença de norte-americanos nos locais das minas de terras raras e outros minérios inseridos no acordo, cuja localização é, em grande medida, nas proximidades da actual extensão da linha das frente, podendo, por isso, servir como "firewall" para os avanços de Moscovo para oeste.

Há ainda outra vantagem colateral apenas na aparência que advém da assinatura deste documento, que Trump já disse que foi combinado no encontro na Catedral de São Pedro, que é o facto de, perante as dificuldades russas de avançar para áreas agora sob "soberania" norte-americana, o Presidente Vladimir Putin pode ser obrigado a repensar as suas exigências rígidas para a assinatura de um acordo de paz com Kiev.

Isso mesmo parece ser o que vai na mente dos estrategas em Washington quando Trump, logo após a assinatura, que teve lugar na noite de quarta-feira, meses depois de ter sido colocado como prioridade pelos norte-americanos, diz que se trata de algo "muito bom" para Kiev porque "a Rússia é muito maior e muito mais forte" e pode "inibir Putin" de avanços mais vigorosos.

Mesmo sendo a sua estrutura visivelmente erguida para garantir uma igualdade nos ganhos económicos da exploração dos minérios ucranianos, os ganhos políticos são de Kiev e as perdas de Washington.

Basta ter em conta para concluir precisamente isso que, ao contrário do que Trump disse nos últimos dois meses, pelo menos, o acordo, afinal, em nada vai garantir que os EUA são ressarcidos dos, disse o próprio, 350 mil milhões USD enviados para a Ucrânia durante o conflito, ou sequer os 100 mil milhões, que é a última cifra referida depois das sucessivas recusas de Kiev em assinar termos tão prejudiciais para o país.

É que, no final, apontam os media internacionais, citando a ministra da Economia ucraniana, Yulia Svyrydenko que assinou o texto, este refere-se apenas a eventuais pagamentos de assistência militar dos EUA "no futuro e não sobre o que aconteceu no passado".

A ser este o real conteúdo do documento, então a vitória de Kiev sobre Donald Trump é gigantesca e, ainda mais, porque o Presidente dos EUA se coloca como garantia de facto, mesmo que não de jure, para travar os avanços eventuais dos russos sobre os territórios abrangidos.

E esta perspectiva foi ainda mais claramente adjectivada pelo secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, que disse que "é um sinal claro para a Rússia de que a Administração Trump está empenhada no processo de paz centrado numa Ucrânia livre, soberana e próspera".

Além disso, o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, garantiu com ênfase propositada que a Ucrânia "mantém o pleno controlo sobre os minerais existentes no país, as suas infra-estruturas e todos os recursos naturais", o que contraria pesadamente as exigências anteriores da Casa Branca.

Shmyhal foi ainda mais longe e repetiu com sonoridade de vencedor que o acordo não compromete nada que venha do passado mas apenas o que forem "novos investimentos", o que retira a Kiev quaisquer obrigações de pagar seja o que for aos EUA relativo aos últimos anos.

Ao fim da manhã desta quinta-feira, 01, não se conhecia qualquer reacção do Kremlin.

Mas este acordo é dado a conhecer quando em curso está a questão do cessar-fogo de três dias proposto por Putin para coincidir com as comemorações das vitória da então URSS sobre a Alemanha nazi, que já conta com presenças confirmadas de peso como o Presidente da China, Xi Jinping, ou o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.

Zelensky recusou essa proposta de Putin e apresentou uma contraproposta de 30 dias sem guerra a começar de imediato, sem esperar por 09 de Maio, o que Moscovo não aceita alegando que os ucranianos apenas querem ganhar tempo para se recomporem das dificuldades na linha da frente.

E de forma subtil, Zelensky deixou no ar uma ameaça de que Kiev pode importunar as comemorações de 09 de Maio em Moscovo, o que, a suceder, admitem vários analistas, pode dar um novo curso a esta guerra, com uma escalada substantiva nos meios usados pelos russos.