Fome, miséria, desemprego, desconfiança, insegurança, péssimas condições de saneamento, falta de saúde e educação e problemas de mobilidade são factos irrefutáveis, o País está a mergulhar numa profunda crise económica, moral e social. A maior parte da população passou a viver numa conjuntura de apertar os cintos e de estar permanentemente a fazer contas à vida. O Estado carrega nos impostos e no aumento dos preços dos projectos, pede-lhes paciência e sacrifício, não sabe dialogar e negociar. O povo sai à rua para fazer valer a sua voz, para expressar a sua indignação, para lhes pedir clemência, que, ao menos, se compadeçam com o seu sofrimento. Contudo, há quem viva a ostentar, a esbanjar, a viver à custa do esforço alheio, sem se preocupar com as consequências e sem pensar, ao menos, que do outro lado vivem também seres humanos, que vivem cidadãos nascidos na mesma pátria e que lhes confiaram os destinos da Nação. É esta arrogância, esta petulância, esta indiferença que causa dor e gera revolta. Muitos dos nossos governantes ainda não perceberam que é pelo povo que estão nos cargos e é pelo povo que devem governar. Quem tem fome não deve roubar, saquear, nem vandalizar. Não é correcto! Mas quem tem fome quer respostas, quem tem fome não sabe esperar, principalmente quando quem lhe deve dar de comer está a comer sozinho.

O Chefe Máximo disse um dia ao seu novo, jovem e preparado ministro para não ter medo da farda. O povo fez a sua interpretação extensiva e também passou a deixar de ter medo e respeito pela farda. O polícia que bate no cidadão não dorme e acorda com a farda. No fim do dia, tira a farda e torna-se um deles. É também um destes cidadãos que sofre e luta pela sobrevivência. Vive no mesmo bairro e tem os mesmos problemas de quem se manifesta nas ruas. Este polícia é o marido da zungueira, é o filho do reformado, é o pai do kandengue que levou o Chocapic, é irmão do taxista que está a fazer a greve e é sogro do revu. Ele vive todos estes problemas e dilemas, quando tira a farda é um deles. Vive numa permanente contradição porque combate aquilo que está a viver e aqueles que com ele vivem. Quem dá ordens nem sabe que ele existe e o que ele vive. É um elemento que conta para as estatísticas, mas é também um daqueles que todos os dias se confronta com a tabuada das nossas vidas: a dele é sempre a subtrair e dividir, a dos chefes é sempre a somar e a multiplicar. Quando chega a casa, ainda leva com uma pergunta do filho mais velho: por que razão a Polícia Nacional investe cada vez mais em meios de repressão e quase nada em meios de protecção/prevenção?

Temos de ter a capacidade de perceber as causas destas acções. Temos de deixar de procurar ou fabricar culpados. Temos de assumir que estamos a falhar na governação, que estamos a falhar como cidadãos. Temos de assumir que estamos a falhar na inclusão, na aceitação do outro, estamos a falhar no respeito pela opinião divergente, temos de ter a coragem de aplicar a ética na relação com o povo.
Estamos a falhar porque demorámos a responder, a dar soluções. O silêncio de João Lourenço é perturbador e é um mau sinal. A sua capacidade de reacção não pode ser efectiva quando se trata de mandar recados aos seus adversários políticos, internos e externos. Deve dirigir-se aos cidadãos, passar-lhes uma mensagem de tranquilidade e de paz, fazer apelo ao respeito pela lei, pela ordem e pela autoridade. Quando a reacção/orientação é colocar Bento Kangamba nas ruas a mobilizar os cidadãos, é um sinal de que não há estratégia e que só há populismo. Outro sinal preocupante nisso tudo é que não se vê as grandes e históricas figuras do MPLA a surgirem neste momento ao lado do líder, a fazerem apelos à calma, à paz e à harmonia. As insanáveis contradições internas estão a fazer de João Lourenço um homem só e cada vez mais isolado pelos seus. É que nem nestes momentos de aperto os seus camaradas aparecem para o apoiar e confortar. É que o líder também lhes complicou a tabuada da vida.