Há anos que, antes do encontro entre os chefes das diplomacias chinesa e russa, o eixo Pequim-Moscovo engendrava o momento para anunciar como objectivo acabar com o domínio de Washington sobre um mundo que ainda estava - e está, em grande medida - assente nas regras desenhadas pelos EUA no pós II Guerra Mundial, sob os pilares do FMI, do Banco Mundial, da NATO e mesmo das Nações Unidas, em cujo Conselho de Segurança subsiste uma maioria de lugares permanentes ocupados por países ocidentais alinhados com Washington.

Essa realidade, que vigou durante quase 80 anos, permitiu e proporcionou que a geografia planetária fosse sendo desenhada com uma parte reduzida da Humanidade - Europa, América do Norte, e algumas ilhas na Ásia e na Oceânia -, onde vivem pouco mais de mil milhões dos 8 mil milhões de pessoas que habitam o Planeta Terra, por estes dias rebaptizada de "Ocidente Alargado", vivesse em abundância face à penúria observada no resto do mundo, o "Sul Global", onde isso é mais abrasivo em continente como África e partes da Ásia.

Se Vladimir Putin e Xi Jinping deram o pontapé de saída para a sublevação do "Sul" pobre contra o "Norte" rico, a eles rapidamente se juntaram, mesmo que nem sempre alinhando claramente nos métodos em uso para esse fim, o Presidente do Brasil, Lula da Silva, o primeiro-ministro da Índia, Narenda Modi, ou lideres tão distintos como o sul-africano, o indonésio ou o argentino.

Por detrás disto está a insustentável situação de opulência ocidental em contraste resinoso com a miséria do Sul Global, onde centenas de milhões nascem e morrem com fome, doentes e sem esperança, o que é, ironicamente, ao mesmo tempo fruto da geoestratégia ocidental e o combustível da revolta dos miseráveis da Humanidade.

Aos lideres da mudança, Putin, Xi, Lula, Modi, Ramaphosa... que são, coincidência ou não, lideres dos países que criaram os BRICS, o, a partir do próximo ano, grande bloco de 11 Estados, com a entrada da Arábia Saudita, dos EAU, Egipto, da Argentina, da Etiópia e do Irão, a que rapidamente, por ausência de alternativa face à esmagadora maioria de países que se sentam na Assembleia-Geral da ONU, se juntou o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres... defendendo sem mais palavras uma nova ordem global, com novos membros no Conselho de Segurança e novos polos de decisão...

Só não está ainda claro se Guterres alinha com os termos do eixo Pequim-Moscovo + BRICS, que além de uma mudança da Ordem Mundial baseada nas regras dos EUA para uma nova plataforma global multipolar e baseada na cooperação entre iguais...

Ou mesmo os EUA que, finalmente, como não tinha sucedido até e então, pela voz do seu Secretário de Estado, Antony Blinken, o chefe da diplomacia norte-americana, numa alocução pouco noticiada nos media ocidentais (curiosamente), esta semana, na Universidade John Hopkins, proferiu a frase que muitos aguardavam há muito tempo: "A velha ordem mundial acabou!".

À qual juntou as palavras que, provavelmente vão entrar directamente na História: "O que estamos a experienciar agora é mais que um teste à resistência da ordem mundial saída da II Guerra Mundial, é o fim dessa ordem mundial", e admitindo que nã sabe ainda muito bem o que lhe caiu no colo, disse que tal processo não aconteceu do dia para a noite, estando as suas dimensões múltiplas para ser descortinadas em discussão e debate que se prolongarão para as décadas seguintes.

Mas sabe uma coisa com segurança e método, que os EUA vão tudo fazer para manter a liderança do mundo, com as suas palavras a redireccionarem-se para a justificação piedosa desse objectivo: "A Rússia e a China tudo farão para criar um mundo seguro e o fortalecimento das autocracias", o que, em tradução livre, é Blinken a dizer que a Washington que cabe permanecer como líder e defensor do "mundo livre", o que não é nem mais nem menos que todo o argumentário condensado de décadas de Guerra Fria.

Neste seu discurso histórico, Blinken diz que décadas de estabilidade geopolítica, mesmo que com dois terços da Humanidade doente e com fome ininterruptas, estão a ser atiradas para o lixo através de uma intensificação da "competição com poderes autoritários e revisionistas", acusando disso directamente russos e chineses.

E apontou a guerra na Ucrânia como a "mais aguda ameaça à ordem mundial emanada da Carta das Nações Unidas e o seu fulcral principio da soberania, integridade territorial e independência", que, sendo encaixável no exemplo que deu, também o é na invasão norte-americana do Iraque ou do Afeganistão, da deposição de Kaddaffi, na Líbia, ou das dezenas de golpes de Estado patrocinados por Washington na América Latina e África ao longo de décadas, como de resto, pode igualmente ser dito de Moscovo ou de Pequim, com menor ou maior densidade de situações.

Mas foi a China que mais fez brilhar os olhos de Tony Blinken neste discurso na Universidade John Hopkins, que acusou de ser "o maior desafio de longo termo" porque Pequim tem como objectivo e aspiração "redesenhar a Ordem Mundial" colocando o seu crescente poder económico, militar, tecnológico e diplomático ao serviço desse objectivo, esforço para o qual conta com a junção de esforços da Federação Russa.

Se estes dois blocos, o Ocidente Alargado, que redefine a geografia planetária, "metendo" Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia entre a Europa e os Estados Unidos, e o Sul Global, que faz o mesmo, empurrando a China do geográfico Hemisfério Norte para o político Hemisfério Sul, vão conseguir sobrepor-se, dificilmente acontecerá, até porque, como tem sublinhado Narenda Modi, a Índia tem o seu caminho próprio com o seu 1/5 da população mundial, os seus interesses próprios e a sua capacidade intacta de definir as suas políticas e diplomacia, mas também já disse que como está o mundo não serve.

Como agira África?

O que vai fazer África neste contexto é, olhando para esta hipersónica mudança no xadrez mundial, onde o "grand jeu" deixou de ser coisa de ricos para ser coisa de todos, é uma das questões mais relevantes, porque o continente tende, provavelmente mal, mas cuja ideia começa a ser aceite, a ser visto como falando a uma só voz, o que, de resto, fica evidenciado pela forma como a União Africana é convidada a entrar no Conselho de Segurança por todos, e como em Adis Abeba essa possibilidade pode vir a ser a mais consensual.

Todavia, nos fóruns mais alargados, como a Assembleia-Geral da ONU, que reúne esta semana, na quarta e quinta-feira, África continuará a ser uma plêiade de 55 países e respectivos lideres, o que os grandes polos de poder, Washington-Bruxelas-Tóquio e Pequim-Moscovo + Nova Deli e Brasília e Pretória, não escondem como estando a lutar pela influência tanto regional como sub-regional.

Mas a dúvida mantém-se: Irá o pan-africanismo pragmático impor-se e África vai, finalmente, obrigar os poderosos a sentar-se à mesa entre iguais, porque essa será a única forma de fazer render as imensas, inigualáveis, raras e imprescindíveis para as novas indústrias tecnológicas, riquezas minerais?

Só não o fará se não quiser, porque há uma certeza adquirida nos dias que correm: sem o coltão e o cobalto da RDC, as terras raras de vários países, entre estes Angola, onde o ainda em segredo PLANAGEO (Plano Geológico Nacional) pode ser um trunfo de Luanda neste novo "grand jeu", uma boa parte da indústria das tecnologias de ponta do ocidente e da China sofreriam um abanão do qual só sairiam em décadas.

E esse pode ser um dos pontos mais salientes da Cimeira do G77+China que começa esta sexta-feira, 15, em Cuba, com a presença de perto de mais de uma centena de lideres dos 134 países que integram este grupo, onde está o Chefe de Estado angolano, João Lourenço, até porque os temas em destaque para isso levam: o desenvolvimento de uma ordem internacional mais "justa, reforço da rede de segurança financeira global e um maior acesso a financiamento bem como as novas tecnologias e a inovação.

O fórum vai começar com um discurso de António Guterres, que, em mensagem a propósito para o G77+China, disse ter considerar "muito importante que os países em desenvolvimento lutem para garantir as transformações necessárias nos sistemas internacionais, de modo a criar condições para que possam enfrentar os desafios e recuperar o ímpeto do seu desenvolvimento".

Ou seja, o chefe da ONU está disponível para servir de plataforma de influência no processo de construção de uma nova ordem mundial... só não se percebe ainda se vai alinhar por uma nova ordem, que, no fim, se conclua que se mudou alguma coisa para que tudo pudesse ficar na mesma, ou numa nova ordem onde a cooperação será o "húmus" do futuro da Humanidade, com um desenvolvimento harmonioso, sem privilegiados e desgraçados, com o azimute colocado no combate às alterações climáticas e ao equilíbrio social...

O papel da NATO...

O que se sabe já, como disse Blnken na John Hopkins, é que os Estados Unidos da América querem continuar a liderar esse novo mundo e que a sua "guarda pretoriana", a NATO, estará alinhada com essa pretensão, como fica claro no desenho antecipado à reunião dos chefes militares da organização de defesa do Atlântico Norte onde irão abordar essencialmente a capacidade desta plataforma militar de responder a "situações imprevisíveis".

A NATO reúne entre esta sexta-feira, 15, e Domingo, em Oslo, capital norueguesa, para discutir o fortalecimento da Aliança Atlântica, com o propósito de fortalecer a capacidade de dissuasão da aliança.

Os chefes militares da NATO irão abordar a logística, reforço de meios militares em prontidão, adaptação das estruturas da Aliança Atlântica a situações imprevisíveis, o reabastecimento de stocks e preservação das capacidades militares, além de futuros exercícios conjuntos, o que é uma "check list" que encaixa na perfeição nas necessidades dos Estados Unidos perante os desafios de vida ou morte com que estão confrontados.

Tal como o são os princípios fundadores do AUKUS, uma plataforma similar à NATO criada recentemente no Indo-Pacífico pelos EUA, Reino Unido e Austrália (Ver links em baixo nesta página).