A posição da China desde o início deste conflito, há quase dois anos, a 24 de Fevereiro de 2022, não mudou, é claramente de proximidade estratégica à Rússia mas de equidistância no que diz respeito à guerra no leste europeu, o que levou Pequim a recusar, mais uma vez, estar presente na reunião "secreta" organizada por Kiev, desta feita em Davos, na Suíça, no Domingo, véspera do Fórum Mundial Económico, com 83 países, para debater o seu "plano de paz".

Este plano de paz do Presidente Volodymyr Zelensky, que esta segunda-feira, 15, chegou a Davos para participar no Fórum, que ficou conhecido pelo plano dos 10 pontos, já foi considerado ridículo pelo Kremlin, porque exige a saída da Rússia de todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia, anexada em 2014, e as regiões anexadas em 2022, Kherson, Zaporizhia, Lugansk e Donetsk, sendo a ausência de Pequim do encontro de Davos, que teve lugar este Domingo, uma indicação de que a China não concorda com esta abordagem.

Todavia, mesmo ausente, a China, segundo os media internacionais que cobriram este encontro nos Alpes suíços, teve papel de destaque porque foi para o gigante asiático que os presentes se viraram em busca de uma intermediação com o Presidente russo, Vladimir Putin, para o convencer, aparentemente sem quaisquer alterações aos 10 pontos iniciais, da viabilidade da proposta de Zelensky.

Este encontro teve ainda a particularidade de ter contado com mais países do denominado Sul Global, onde existe uma menor adesão às teses ucranianas e dos seus aliados, e menos do Ocidente Alargado, onde estão os principais pilares do apoio a Kiev, mas igualmente condenado ao fracasso, até porque, como foi noticiado em alguma imprensa, Kiev viu ali crescer o "mapa" dos apelos a uma paz negociada com Moscovo com novos termos e menos rigidez de parte a parte.

Sem sequer ter sido elaborado um rascunho de uma posição comum entre os 83 países presentes em Davos, demonstrando sem margem para dúvida que o plano de Zelensky não tem aderência de relevo fora dos seus aliados ocidentais, a Ucrânia, através de Andriy Yermak, o Chefe de Gabinete do Presidente ucraniano, que liderou a representação ucraniana, lançou um pedido à China para que o Presidente Xi Jinping, a quem se reconhece uma solida ligação a Putin, faça o "milagre" de abrir o caminho para futuras conversações, estranhamente com base no mesmo plano que o Kremlin já descartou sem apelo nem agravo.

E como se essa proposta não fosse um renovado desafio à sensatez diplomática, que é continuar a insistir numa proposta já rejeitada várias vezes por Moscovo, Kiev não parece ter em consideração que também na frente de guerra está agora claramente numa posição fragilizada, a recuar no terreno e a lançar apelos vigorosos aos seus aliados para o envio de mais armamento, quando as suas unidades estão, segundo a imprensa ocidental, quase sem munições de artilharia e com escassez de todo o tipo de armas e logística que alimentam a frente.

Alguns analistas, com o suíço Jacques Baud, antigo oficial de intelligentsia helvética, da NATO trabalhou no departamento ucraniano, e ao serviço das Nações Unidas esteve ligado a várias operações de paz, além de ser autor de dois livros sobre a guerra no leste europeu, entendem que não só a Ucrânia está derrotada no campo de batalha como a falta de apoio norte-americano só apressa essa constatação, porque a manter-se, apenas protela esse desfecho.

Jacques Baud entende que esta guerra foi "claramente imposta à Ucrânia pelo ocidente" que tinha informações erradas sobre a fragilidade das forças armadas russas e sobre a economia do país, que se revelaram muito mais robustas que a ideia que delas tinhas as chefias militares ocidentais e da NATO, considerando que à frente desta imposição estiveram o Reino Unido e os Estados Unidos.

O congelamento do conflito, que é uma proposta que, aparentemente, poderia colar aos limites impostos por Moscovo, onde Putin já disse que mantém a disponibilidade para negociar com Kiev, mas nos termos da Rússia, usando a arrogância de quem se sente a vencer, e também dos aliados ocidentais, não parece colher qualquer simpatia no círculo mais restrito de Volodymyr Zelensky.

Aparentemente, Zelensky mantém em cima da mesa a promessa que recebeu do ocidente, pela voz do então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, quando este, irrompeu, em Março de 2022, pouco depois do início da invasão russa, intempestivamente por Kiev para obrigar Zelensky a travar as negociações com Moscovo, convencendo-o de que poderia vencer a Rússia no campo de batalha com apoio da NATO, de quem teria "todo o apoio em armas e dinheiro e durante o tempo que fosse preciso".

O Presidente ucraniano cedeu à pressão de Boris Johnson e, agora, está a usar essas promessas para exigir aos EUA e ao reino Unido o apoio que está a faltar na linha da frente às suas unidades de combate, cada vez mais fragilizadas também pelo volume insubstituível de baixas em combate, entre mortos e feridos.

Só que, dos EUA, dificilmente voltará a receber volumes generosos de armas e dinheiro, porque o Presidente Biden está de mãos atadas pelo Congresso, onde a oposição republicana domina a Câmara dos Representantes e impede a aprovação das verbas pedidas pela Casa Branca, sendo quase seguro que assim se manterá ao longo de 2024, até à realização das eleições de 05 de Novembro, às quais o ex-Presidente Donald Trump surge como favorito nas sondagens, e que já deixou claro que com ele a Ucrânia deixará de contar nos planos norte-americanos.

Desvalorizando esta reunião em Davos, como o fez deliberadamente a porta-voz dos Negócios Estrangeiros, Putin esteve ao telefone com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o ministro Sergei Lavrov, falou com o seu homólogo do Irão, sendo o assunto comum a ambos a situação na Ucrânia e a guerra no Médio Oriente.

Ao mesmo tempo, já nesta segunda-feira, nalguns media russos, voltou a ser evidenciado o facto de Zelensky ter feito aprovar no Parlamento ucraniano uma lei que proíbe todos os ucranianos e organizações nacionais sem excepção de negociarem com Vladimir Putin.

Kiev está igualmente a viver uma crise interna grave, com a confrontação directa entre o Presidente e o CEMGFA, o general Valeru Zaluzhny, especialmente sobre as políticas agressivas de recrutamento de mais de 450 mil novos recrutas, fortemente contestada na sociedade ucraniana, levando a que milhares de homens, até idades cada vez mais avançadas, para já 45 anos, estejam a procurar fugir do país para a Europa Ocidental.

O jornal britânico The Times publicou recentemente uma notícia onde diz que dezenas de ucranianos estão a morrer nas áreas geladas da fronteira com a Roménia, onde buscam refúgio às cada vez mais intensas rusgas do Exército para alistamento forçado.

Estas mortes, segundo o jornal de Londres, foram registadas apenas por uma única unidade da guarda de fronteira posicionada entre a Ucrânia e a Roménia, este Inverno, com temperaturas que atingem os 20º negativos, que é uma das razões para estas mortes ou uma das razões, sendo que a fuga é a solução para evitar o envio para a guerra, onde já morreram ou ficaram gravemente feridos centenas de milhares de soldados, homens e mulheres, de um e do outro lado.

Sendo um facto o elevado número de mortes dos dois lados das trincheiras, para a Ucrânia a substituição das baixas na linha da frente é muito mais difícil porque o universo de recrutamento é menor, apenas uma população de cerca de 25 milhões de pessoas, actualmente, depois de vários milhões terem deixado o país após o início da guerra, em Fevereiro de 2022, enquanto a Rússia tem uma população de mais de 150 milhões e, embora não seja possível verificar estas informações, com um volume substancial de voluntários, como tem repetido o Presidente Vladimir Putin.

Esta situação é de tal modo assim que o porta-voz dos serviços de informações da Ucrânia (GUR) Vadim Skibitski já veio admitir como um problema sério o facto de mais de mil pessoas se alistarem todos os dias voluntariamente no Exército da Federação Russa.

Uma nova configuração para a guerra

Efectivamente, como notam alguns analistas, dentre estes Alexander Mercouris, um observador independente, britânico, que, embora exponha amiúde uma perspectiva de maior destaque aos feitos das forças russas, se tem imposto pelo rigor das suas análises, o conflito na Ucrânia, com o deslaçar do apoio norte-americano, pode estar a entrar numa nova configuração, muito mais perigosa e volátil.

Isto, porque, com a escassez de munições de artilharia de 155 mm, calibre NATO, e a evidente fragilidade dos sistemas antiaéreos ocidentais, Patriot, Iris-T ou NASAMS, face à capacidade hipersónica dos misseis russos Kinzhal, e do volume dos projecteis balísticos e drones, que extenuam essas defesas, Kiev pode contar em breve com novas remessas de misseis de longo alcance, como os Taurus, alemães, ou os Tomahawk norte-americanos, que tiveram um papel fulcral na invasão dos EUA ao Iraque ou os ataques à Sérvia, na década de 1990.

Se tal suceder, como reflecte ainda Alexander Mercouris, Kiev passa a dispor de uma capacidade para atingir alvos na profundidade russa, muito para lá das fronteiras pré-24 de Fevereiro de 2022, ou mesmo de 2014, antes da anexação da Crimeia, e não deixará de o fazer face ao iminente colapso da sua estrutura militar.

Como justificação para esta escalada, o uso de armas ocidentais para alvejar regiões russas em profundidade territorial além da área de conflito, está a ser usado o surgimento de notícias em alguns media europeus do recurso, por parte do Kremlin, a misseis balísticos comprados à Coreia do Norte, já denominado Kimiskander (glosa com o nome do Presidente norte-coreano, Kim Jong Un, porque estes são construídos com base no russo Iskander M, para atacar Kiev.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, com destaque para o sector energético, do gás natural e petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 6,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.