O que os analistas ocidentais começaram a erguer como tese logo após a notícia publicada por The New York Times, há duas semanas, foi a inevitabilidade de Kim levar na bagagem como presente para Putin uns largos milhões de munições para a artilharia russa estacionada na guerra da Ucrânia, canhões, morteiros, e drones e uma dúvida: o que levará com ele de volta a Pyongyang?

Com a guerra a entrar numa fase congelada, devido ao aproximar do Inverno do Hemisfério Norte às estepes do leste ucraniano, onde os oponentes deixarão de movimentar as suas unidades de infantaria e mecanizadas, apostando tudo nas várias formas de artilharia, desde obuses a misseis de longo alcance, o que russos e ucranianos procuram é guarnecer os seus arsenais de forma a garantir capacidade de fogo pelo menos até finais de Novembro, quando o solo congela e as terras pantanosas voltam a ser transitáveis.

Aparentemente, até pelo que disse Kim Jong-un à chegada a Vladivostok, a Coreia do Norte não vai "de forma nenhuma" deixar de apoiar a Rússia no seu "combate ao imperialismo ocidental" e na "luta sagrada pela sua soberania", o que se pode traduzir por fornecimento do equipamento militar compatível com as necessidades russas.

Pyongyang, recorde-se, está tecnicamente em guerra com o vizinho do sul, a Coreia do Sul, desde 1953 - foi assinado um arsmistício mas nunca um acordo de paz -, mantendo uma cooperação militar com a então União Soviética até ao seu colapso, em 1990, o que permitiu que este país criasse uma indústria militar sob padrão russo, o que garante hoje a total compatibilidade, por exemplo, do calibre das munições para artilharia, de 152 mm, e do vasto leque de morteiros.

Esse estado de guerra com Seul permitiu, ou obrigou ainda, a Pyongyang, criar arsenais gigantescos de munições e peças de artilharia assente em modelos soviéticos ou com upgrades já proporcionados após o colapso da URSS, abrindo um vasto corredor de fornecimento deste material à Federação Russa, que, apesar de ser um dos maiores produtores de material bélico do mundo, o rácio de gastos diários na frente de guerra, cria um "buraco" que só pode ser tapado com ajuda externa.

Uma das possibilidades que está a ser avançada por vários analistas ocidentais é que os stocks enviados por Pyongyang para Moscovo vão ser repostos pela China, o que deixa entreaberta a possibilidade de se tratar de uma ajuda chinesa ao seu agora principal parceiro estratégico, através do entreposto proporcionado pela Coreia do Norte, como, de resto, os países ocidentais fizeram com a Ucrânia ao repor os meios aéreos, largas dezenas de caças MIg-29, enviados pela Eslováquia, Roméia, Polónia e Chequia a Kiev.

Mas, e o que vai dar Putin a Kim?

Esta é a questão que ganha forma de elefante na sala, porque a Coreia do Norte é há muito tempo uma pedra no sapato dos EUA, Japão e Coreia do Sul nesta região da Ásia, com foco no geoestratégico Mar do Japão, geografia fulcral na disputa entre Pequim e Washington pelo domínio do oriente asiático e do Pacífico, onde, cada vez mais, a Rússia começa a querer ter igualmente um papel de relevo, claramente ao lado da China.

Para Moscovo, esta ligação cada vez mais estreita com a Coreia do Norte tem ainda outra dimensão que não pode ser ignorada. Sendo o Japão e a Coreia do Sul aliados dos EUA e fornecedores materiais de apoio importante ao esforço de guerra ucraniano contra a Rússia, ao ajudar a fortalecer a capacidade de ameaça militar a Pyongyang, Moscovo obriga estes países a conter o fluxo de apoio para Kiev e leva-os a pensar duas vezes sobre até onde é seguro ir nesse mesmo apoio à Ucrânia.

Ou seja, com o reforço do tridente Pequim-Moscovo-Pyongyang, o xadrez no extremo oriente asiático e no Indo-Pacífico fica muito mais perigoso e equilibrado, visto que os EUA têm feito forte investimento no refiorço das suas alianças miliatres nesta vasta região, como o demonstra a recente construção do AUKUS, aliança entre norte-americanos, britânicos e australianos.

Sabe-se que Moscovo vai fornecer a Pyongyang tecnologia de satélites e alimentos em maior quantidade, porque isso não é uma novidade.

Mas fica por saber o que está na parte de trás da folha de entregas da Rússia à Coreia do Norte, suspeitando alguns especialistas que possa estra incluído no pacote tecnologia de submarinos nucleares ou de misseis balísticos e armamento hipersónico... O que a verificar-se, será uma dor de cabeça extra para o Washington, Tóquio e Seul, pelo menos.

Nas declarações de Putin sobre este encontro, o enquadramento foi menos objectivo, tendo este feito, como era de esperar, referências vagas ao apoio humanitário e às relações económicas bilaterais.

Foi, todavia, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, que, antes desta visita ter lugar, fereiu que as relações entre a Coreia do Norte e a Rússia "não dizem respeito nem aos EUA nem aos países ocidentais" e não deve ser vista como fonte de preocupações para papuses terceiros.

A conclusão mais ácida deste encontro é que a Rússia não espera que a guerra com a Ucrânia possa entrar em breve num fade out e inicie caminho para a mesa das negociações, porque só assim se percebe a necessidade de robustecer os seus paióis de munições...

Nem de propósito, a Coreia do Norte voltou, esta noite, de terça para quarta-feira, 13, a lançar dois misseis balísticos sobre o Mar do Japão, voando mais de 600 kms, despenhando-se sobre as águas internacionais.

Estes "testes" ao armamento balístico norte-coreano são claramente mais um "teste" à paciência japonesa, sul-coreana e norte-americana que ao material, que esse está mais que testado na sua capacidade de atingir alvos a milhares de quilómetros com ogivas nucleares.

Mas permanece a questão: está este "filme" a ser rodado para camuflar o viaduto por onde a China começa a apoiar materialmente o seu aliado no seu esforço de guerra? Provavelmente só mais tarde se saberá... se se vier a saber algum dia. (Ver links em baixo nesta página, sobre os interesses comuns de Pequim e Moscovo)