Ora vejamos,
No âmbito da condução da política fiscal, a Comissão Económica do Conselho de Ministros (CECM) aprovou, no dia 9 de Agosto, um diploma que contém as Medidas de Cativação das Despesas do Orçamento Geral de Estado (OGE) 2023. De acordo com as notícias postas a circular pelo Executivo e as declarações da responsável pelo Ministério das Finanças (MINFIN), a medida decorre do Memorando sobre a Situação Orçamental e Financeira que o País enfrenta e visa adequar a trajectória de realização das despesas públicas à realidade da arrecadação das receitas, de forma a assegurar a sustentabilidade da dívida pública e reverter os défices orçamentais. O diploma esclarece, ainda, que tais medidas dispensam a revisão orçamental do OGE 2023, uma vez que já se deu início à preparação do OGE 2024.

A decisão do CECM deve ser apreciada à luz da formulação e condução da política económica do Governo face ao actual contexto adverso das finanças públicas. No entanto, antes de qualquer avaliação do mérito da medida, importa recordar que OGE 2023 é uma lei aprovada pela Assembleia Nacional (AN) e que, salvo melhor entendimento por parte dos especialistas das ciências jurídicas, o Titular do Poder Executivo (TPE) não tem competência para alterar ou modificar aquele instrumento.

Por exemplo, sem desprimor das diferenças de enquadramento jurídico-legal, fundamentalmente ao que estipula a Constituição da República e a própria lei orgânica do OGE, num passado recente, vimos a destituição de um Presidente da República com fundamentação no incumprimento de disposições previstas na lei que rege a orçamentação pública. De facto, o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, a 36.ª Presidente do Brasil, começou a 2 de Dezembro de 2015 com um pedido de destituição aceite por Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, e continuou até ao final de 2016. A Presidente Dilma Rousseff tinha sido indiciada por improbidade administrativa criminal e desrespeito ao orçamento federal em violação do artigo 85 da Constituição da República e da Lei de Responsabilidade Fiscal, artigo 36.

Em Angola, foi com enorme perplexidade e espanto que ouvimos o MINFIN afirmar que "na defesa da sustentabilidade das finanças públicas, propusemos e foi aprovada a cativação de despesas de determinada natureza, ou seja, nos próximos meses até ao final do ano, há um conjunto de despesas que estarão suspensas de execução". A decisão da CECM tem dois pecados capitais. Primeiro, faz recurso ao mecanismo das cativações da despesa para assegurar o equilíbrio orçamental e, segundo, não apresenta quaisquer números para que o cidadão comum, e não só, possa fazer contas à vida, ou seja, não mostra o quadro de sustentabilidade da medida aprovada.

Em primeiro lugar, sobre a cativação da despesa, importa relevar que a mesma corresponde a uma retenção de parte dos montantes orçamentados no lado da despesa que se traduz numa redução da dotação disponível dos serviços e organismos. A libertação dessas verbas (descativação) é, regra geral, sujeita à autorização do MINFIN. Normalmente, o principal objectivo das cativações é assegurar ao MINFIN maior controlo sobre a execução do OGE, permitindo evitar derrapagens da despesa, na medida em que condiciona a libertação da verba e evita assim que as unidades orçamentais gastem sem primeiro concretizar um nível de receita suficiente. Teoricamente, as cativações podem também ser entendidas como uma forma de prevenir a "sobreorçamentação" de receitas próprias por parte das unidades orçamentais, evitando, assim, que este desajuste entre as projecções e a realidade conduza a défices orçamentais.
Conforme notícia do Jornal Expansão do dia 21 de Julho do corrente ano, o MINFIN reconhece existir um buraco nas contas do OGE 2023, de 7,4 biliões Kz, o que representa 37% do total de receita e despesa prevista para o presente exercício económico. Ora, por uma questão de imperativo legal e de respeito aos mais elementares princípios de boa governação, a utilização das cativações não pode ser o caminho para corrigir o "tiro". Alias, a utilização abusiva das cativações nestes montantes pressupõe, em nosso entender, uma violação da Lei Orgânica do OGE e a usurpação de competências da AN por parte do TPE e dos seus auxiliares.

Outrossim, a justificação avançada pelo MINFIN para não elaborar e fazer aprovar um OGE 2023 Revisto, porque já está em curso a preparação da proposta para o próximo orçamento (2024), é simplesmente desconcertante e anedótica. O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Alias, a preparação em simultâneo dos dois orçamentos (2023 Revisto e 2024) asseguraria maior coerência ao exercício de programação macroeconómica e de planeamento das acções priorizadas pelo Executivo. Na verdade, a posição defendida pelo MINFIN só nos deixa duas interpretações possíveis: i) o Executivo não quer sujeitar-se ao crivo dos deputados e da sociedade civil, uma vez que implicaria assumir publicamente o optimismo arrogante e/ou ingénuo na projecção do lado da receita e ii) persiste no descontrolo da despesa, incluindo uma má programação do serviço da dívida com as instituições financeiras chinesas.

A tudo isto assistimos em meio a um silêncio ensurdecedor por parte dos órgãos do aparelho do Estado responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização da execução do OGE (IGAE, Tribunal de Contas e AN). A intervenção desses órgãos é recomendada pela própria teoria económica e estudos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Por exemplo, Deléchat et al. (2015) defendem que instituições fiscais eficientes podem ajudar a manter ou melhorar o espaço fiscal, o que permite aos países aumentarem a despesa e a incorrer em défices fiscais maiores sem comprometer a estabilidade macroeconómica e a sustentabilidade da dívida.

Os países com espaço fiscal suficiente podem executar políticas fiscais expansionistas (anticíclicas) em resposta a choques negativos, ajudando assim a mitigar o impacto de qualquer queda na procura do sector privado. Em Angola, fica evidente a falta de compromisso com a good governance e transparência orçamental. Pasme-se!

Em segundo lugar, a aprovação do diploma sobre a medida de cativação de despesa não se faz acompanhar de um quadro indicativo de sustentabilidade do OGE 2023. Era expectável serem apresentados números que pudessem informar e formar as expectativas dos agentes económicos. Em nosso entender, é inaceitável que sejam feitos anúncios de medidas de políticas sem o devido enquadramento económico e financeiro. Números, precisam-se, Camaradas!

Ademais, o Executivo ainda não explicou publicamente qual é, afinal, a origem da crise das finanças públicas. Os dados sobre a produção petrolífera publicados pela Agência Nacional de Petróleo e Gás (ANPG) indicam que, nos primeiros sete meses do presente exercício económico, a produção se fixou em média nos 1.082.173 barris de petróleo por dia, o que significa uma queda na ordem dos 8,3% face ao previsto no OGE 2023 fixado em 1.180.000 barris/dia. Entretanto, o OGE 2023 foi aprovado com um preço do barril de petróleo de referência igual a 75 USD. Impõe-se constatar que, neste mesmo período, o preço do barril de petróleo no mercado internacional tem estado confortavelmente acima deste referencial, o que amortiza parcialmente a queda da receita petrolífera pelo efeito negativo da produção.
Então, qual é a origem do buraco de 7,4l bilhões nas contas do OGE 2023? Será que a receita não-petrolífera está muito abaixo do previsto no OGE 2023? Ou será que houve uma desorçamentação de despesas inadiáveis, por exemplo, o reinício do serviço da dívida com os bancos chineses? A Revisão do OGE 2023 daria as respostas a estas perguntas, enquanto a cativação da despesa esconde a realidade dos factos.

Verificámos uma sistemática e contraproducente opacidade na comunicação do MINFIN com os agentes económicos. A literatura económica especializada em países produtores de petróleo demonstra que a qualidade e a transparência das instituições são importantes para os resultados fiscais (IMF, 2007). Esses estudos defendem o fortalecimento da qualidade institucional e a promoção da transparência fiscal. A postura do MINFIN e de todos os órgãos responsáveis pela fiscalização do OGE enfraquecem e descredibilizam todo o processo de orçamentação e gestão da coisa pública em Angola. Ou seja, perante ao abismo: um passo em frente.

Finalmente, fazendo um exercício de interpretação e/ou tradução numérica do discurso do MINFIN, não se vislumbra muito bem quanto é que o Executivo quer cativar até ao final do ano. Ora, ao analisar o conteúdo da apresentação feita sobre a despesa a cativar, os indicadores da tabela abaixo demonstram que o exercício não é quer exaustivo, quer rigoroso. Vejamos, o serviço da dívida pública (juros e reembolso de capital) consome 46,42% do OGE. Se a estes valores somarmos a despesa com pessoal, chegaríamos aos 59,74%. Devemos ainda acrescentar as despesas de bens e serviços dos sectores da Saúde, Educação e protecção social que, juntos, consomem cerca de 15% do OGE. Assim, temos um total de despesa a não cativar de aproximadamente 79,74%. Por outro lado, devemos considerar que a despesa de capital (investimento público) com financiamento externo garantido e constantes da carteira de projectos do PIIM estão também isentos de cativação. Logo, não se compreende, de todo, qual é a poupança esperada deste exercício para tapar o buraco estimado no OGE 2023.

De facto, vale recordar aos nossos formuladores de política económica a frase de Eurípedes "Os Deuses enlouquecem primeiro aqueles a quem querem destruir".
Bibliografia
- Corinne Deléchat, Ejona Fuli, Dafina Mulaj, Gustavo Ramirez and Rui Xu (2015) "Exiting From Fragility in sub-Saharan Africa: The Role of Fiscal Policies and Fiscal Institutions" IMF Working Paper
- International Monetary Fund "The Role of Fiscal Institutions in Managing the Oil Revenue Boom" Fiscal Affairs Department