Ao longo desse odioso "comércio", Luanda foi o maior entreposto atlântico de escravos a partir do século XVII, com uma cifra avaliada em aproximadamente 6 milhões de almas, a que corresponde 44% do "tráfico negreiro" cujo destino foi essencialmente o Brasil.
A maioria veio do actual Gana, a conhecida "Gold Coast", da bacia do Rio Niger, que inclui Benim, Burkina Faso, Camarões, Chade, Costa do Marfim, Guiné, Mali, Níger e Nigéria, e também do Congo e Angola.
No Brasil, a escravidão abrangeu a cultura da cana-de-açúcar e do tabaco, produção de algodão e arroz, a mineração de ouro e diamantes e também o plantio do café. Todas estas produções foram realizadas por escravos africanos.
Nos séculos XVI e XVII as regiões que receberam mais escravos foram Pernambuco e Bahia- terra de Dorival Caymmi e João Gilberto, Caetano, Gil, Gal e Bethânia.
No século seguinte, os portos de acolhimento foram fundamentalmente a Bahia e o Rio de Janeiro. E no século XIX, com o predomínio da cultura do café, os escravos chegaram principalmente ao Rio de Janeiro e aos portos do sueste brasileiro, e depois progrediriam em direcção a São Paulo.
E aqui chegados, nessa viagem sem regresso, importa sublinhar o seguinte: calcula-se, com base em estudos robustos de autores diferenciados- que cerca de 30% dos capturados na costa ocidental de África morressem nas travessias atlânticas! Convém citar Eric Williams ( 1911-1981), antigo primeiro-ministro de Trinidad e Tobago, que escreveu "Capitalism & Slavery", uma obra seminal, editada em 1944; trabalho que constitui a sua tese de doutoramento, onde aborda "a complexa relação entre o tráfico de escravos africanos, a escravidão, a ascensão do capitalismo britânico e a emancipação da população escrava nas Índias Ocidentais", que continua a ser uma referência para os estudiosos do tema, mas continua a suscitar um grande debate no mundo académico, mas é por muitos considerada uma referência seminal no âmbito da historiografia anti-imperialista.
E menciono igualmente o historiador americano Eugene D. Genovese (1930-2012), que se tornou conhecido por uma abordagem marxista no " estudo de poder, classe e relações entre fazendeiros e escravos no Sul, dos Estados Unidos". O autor salienta suicídios colectivos a bordo dos navios negreiros e uma permanente resistência passiva nas plantações, que se traduzia na sabotagem dos utensílios e uma atitude de negligência sistemática, apesar das chicotadas. São conhecidas as revoltas de escravos nas colónias da América logo que aí chegaram e foram instalados os primeiros escravos. "Os escravos negros trabalham contrariados(...)", "tratam mal as suas ferramentas", escrevia - enfurecido - em 1885, um plantador da Carolina do Sul (Farmer and Planter, Fev. 1855, pg. 43); formas de luta e início de um processo de tomada de consciência política, sublinha Genovese na sua obra fundamental "Political Economy of Slavery".
Nessas viagens para as Américas os africanos perderam quase tudo, sobretudo as referências, mas não perderam a voz - e o "doce balanço", o "swing", a passada, o gingado dos corpos. E criaram Música: no norte, o Jazz; mais a sul, o Samba.
Hoje, neste século em que vivemos, muitos anos depois desta tragédia que foi o "tráfico transatlântico" é surpreendente constatar que a originalidade africana se adaptou aos novos contextos na América. E a aceitação destes dois tipos de música- o Jazz e o Samba- em África é distinto; o Jazz, em contacto com os anglo-saxónicos, no norte, ganhou um ar ligeiramente "snob", intelectualizado, tem ainda hoje dificuldade de penetração nas chamadas "culturas populares". É verdade que a África independente reconheceu a força e importância do Jazz- sua história, sociologia, semiologia, princípios e valores, mas nunca o interiorizou verdadeiramente, nunca o integrou no seu mosaico cultural. A África do Sul é uma honrosa excepção, seguida pela Nigéria, Senegal e Moçambique. Angola vai avançando timidamente. Entretanto, o Samba-" o primeiro género de música popular brasileira de âmbito nacional", de acordo com o notável especialista José Ramos Tinhorão (In: História Social da Música Popular Brasileira, Editorial Caminho, Pg. 211), com a presença do colonialismo português e algum suporte castelhano, continua com larga aceitação em vastas regiões de África, designadamente em Angola; onde "está em casa".
Eu vim de Angola, mas eu volto para lá
Este trabalho está centrado essencialmente no Brasil. Na Bahia, devido à sua condição de entreposto de escravos africanos; o Rio de Janeiro - capital da República do Brasil desde 1889, que nos últimos anos do século XIX, se transformou no "centro da convergência de várias migrações internas", que se intensifica com a abolição da escravatura, em 1888, dos trabalhadores negros dos campos para a cidade- tornaram-se dois locais de sobrevivências culturais africanas.
Os movimentos migratórios do século XIX condicionaram a chamada "diáspora negra"; uma migração baseada na violência, no desenraizamento e na escravização.
O Jazz e Samba são sons da migração. Músicas híbridas.
É esta gente humilde e pobre que cria, no Rio, as duas maiores criações populares: o carnaval e o ritmo do samba, transformando a cidade num dos maiores redutos da população negra do Brasil. É uma verdadeira síntese cultural africano-nordestina que irrompe no Rio de Janeiro.
"O samba tem origem afro-baiana de tempero carioca", diz-nos o musicólogo brasileiro, Tárik de Souza; música que mistura elementos musicais africanos com influências indígenas e europeias. Nas rodas de samba do início do século XX, ainda se notava a presença da umbigada, traço direto do semba angolano.
E agora o Samba do Brasil vem saudar o Semba, criado nos quintais de Luanda: afinidades antigas
Luanda vai acolher brevemente o projeto Tardezinha - Samba vs. Semba. É um evento cultural que combina dois ritmos musicais de origem africana: o samba, do Brasil, e o semba, de Angola.
Criado para promover o intercâmbio cultural entre os países lusófonos, o evento proporciona uma tarde animada com música ao vivo, dança, gastronomia típica e um ambiente acolhedor. A proposta é destacar as semelhanças e particularidades dos dois estilos, mostrando como ambos evoluíram a partir de tradições africanas comuns. O samba reflete o ritmo brasileiro, enquanto o semba encanta com a cadência angolana. Aiué Ngola Ritmos!!!!
O público é convidado a dançar, aprender e interagir com artistas e dançarinos. A Tardezinha acontece geralmente ao ar livre, num ambiente descontraído. Além de entretenimento, o evento promove a valorização da identidade afrodescendente. É uma celebração da música como ponte entre culturas irmãs.
O semba e o samba compartilham mais do que apenas semelhanças sonoras; eles têm raízes profundas entrelaçadas na história da diáspora africana e na resistência cultural dos povos negros. Originário de Angola, o semba é um estilo musical e de dança tradicional que se desenvolveu entre as comunidades bantu, especialmente entre os povos Kimbundu. A palavra "semba" tem origem no termo «massemba», que significa um «umbigada», gesto característico da dança africana que simboliza união e fertilidade.
O samba surgiu como um híbrido cultural, integrando elementos musicais africanos com influências indígenas e europeias.
Ambos os estilos são marcados por ritmos envolventes e forte presença da percussão. O semba, com as suas letras sociais e políticas, evoluiu ao longo do século XX em Angola, influenciando outros gêneros, sobretudo nas cidades. Já o samba ganhou projeção nacional no Brasil, tornando-se símbolo da identidade cultural do país.