É um velho (e único) sobrevivente, de uma área que estava cheia de cajueiros nos anos 80 do século passado. (O tempo afirma-se pelas recordações). Este, que foi poupado, acabou por ficar elevado em relação à cota da estrada, e mostra-nos um pouco das suas robustas raízes, que se desnudam, algo envergonhadas, aos nossos olhos, descobrindo as suas intimidades, algumas estranhas (como todas as intimidades). Apresentam formas peculiares, figuras que procuram preservar, como se uma memória para o futuro, pedaços de uma permanência de que só se podem orgulhar.
O tronco, uma imponente coluna cinzelada pelas agruras e alegrias da idade, ergue-se como uma declaração de confiança, não sabendo o quão voláteis são os humanos nos dias que correm, que desprezam a natureza, e tudo vendem almejando lucros rápidos que lhes permitam adquirir a satisfação plastificada da sua condição de novo-rico, que tem mais prazer em observar uma torre envidraçada que descansar à sombra centenária da Mulemba Waxa N"Gola.
A seiva escorre das feridas que inevitavelmente surgem, cristalizando como lágrimas de mirra, jóias do passado, enigmas no presente. Do alto do tronco estendem-se os ramos como braços poderosos, num gesto magnânimo e generoso, segurando a copa e o imenso céu que ela suporta. Essa copa que atravessa toda a alameda, e na qual começa o azul, ou o negro estrelado, do firmamento, oferecendo-nos a protecção da sua sombra, o refúgio da sua capa.
Que bom seria se esse cajueiro se constituísse no abrigo dos tantos sem-abrigo que pululam pela nossa cidade! Os velhos abandonados pelos seus, as mães que arrastam proles numerosas pelas ruas, como salvo-conduto para a sua luta contra a miséria que se agrava cada vez que mais um ser engrossa o exército dos deserdados da sorte que as acompanham, as crianças que cheiram gasolina e se agarram a cada transeunte procurando algo para continuar a sua frágil existência. Mas não, o cajueiro apenas faz a sua parte segurando o céu. Os que por baixo dele se movem e multiplicam já não entram nas contas do seu rosário.
Num mundo cada vez mais egoísta, em que o sucesso é individual, e se vangloria aquele que pode espezinhar o outro, a permanência do cajueiro, com toda a sua fragilidade, é um chamamento à reflexão. Deveria obrigar-nos a pensar no que andamos a fazer nesta breve passagem que termina inevitavelmente pelo regresso ao chão que pisamos de forma tão leviana. Será que fazemos algo para preservar os poucos cajueiros que sobram? Ou estamos a pensar substituí-los por artefactos pré-fabricados importados de alguma dessas sociedades que nos pretendem impor regras e valores que eles mesmos não seguem? Que tipo de sociedade gostaríamos de reunir, e cuidar, debaixo da imensa copa do cajueiro? Que tipo de pessoas estamos a formar para que o futuro não seja um buraco negro para onde a humanidade seja inexoravelmente sugada, e arraste todos os que ela tornou dela dependentes e reféns?
Bem-haja o cajueiro da "minha" alameda, e todos os que resistem neste mundo de hoje, que os não considera.
Plantemos na cabeça de cada um dos meninos com quem interagimos uma semente de cajueiro, para que eles subsistam amanhã.

