"A justiça da causa determina o direito da luta. Sou um rebelde e a minha causa é a liberdade". Yasser Arafat.

Quase dois anos depois da África do Sul ter apresentado, junto do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), a queixa contra Israel pelo genocídio em Gaza, a ONU concluiu, em relatório, que as acções do regime de Telavive no citado território palestiniano "constituem genocídio".

Navi Pillay, presidente da Comissão de Inquérito Independente, criada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, salientou, na apresentação do relatório em causa, a 16 de Setembro, que Israel cometeu quatro dos cinco actos classificados de genocidas pela Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.

Tais actos, de acordo com as Nações Unidas, são, nomeadamente, assassinatos, danos físicos e mentais graves, provocar deliberadamente condições de vida calculadas para causar a destruição de um povo e impor medidas para impedir nascimentos.

No dia anterior, Francesca Albanese, relatora da ONU para os territórios palestinianos ocupados, estimou em 680 mil o número de mortos, vítimas do genocídio, ultrapassando em mais de dez vezes os 65 mil oficialmente divulgados.

Esta estimativa de 680 mil mortos, de acordo com a relatora da ONU, é o número que alguns académicos e investigadores apontam como a verdadeira cifra de mortos em Gaza.

Perante estes dados do genocídio na Palestina, Navi Pillay, juíza sul-africana que fez parte do painel de juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI) que julgou o genocídio do Rwanda, denunciou, em entrevistas, que se está perante uma situação em que há "o maior número de crianças mortas, o maior número de jornalistas mortos, mulheres mortas e abusadas, violência sexual e violência reprodutiva".

Indo ao encontro de Desmond Tutu, arcebispo sul-africano, Prémio Nobel da Paz, falecido em 2021, para quem "perante uma agressão, a neutralidade favorece o agressor", a presidente da Comissão de Inquérito da ONU, sublinhou que a comunidade internacional não pode ficar em silêncio diante da "campanha genocida lançada por Israel contra o povo palestino em Gaza".

Adiantando, em entrevista à rádio TSF, que "há um genocídio em Gaza: ficar em silêncio não é neutralidade, é cumplicidade."

Quando o extermínio da população de Gaza por Israel se transformou no tema central da questão palestiniana, até mesmo para as Nações Unidas, alguns países ocidentais, decidiram fazer um estardalhaço com o anúncio do reconhecimento do Estado palestiniano, num momento em que "o Povo palestiniano corre o risco de desaparecer", de acordo com a denúncia de Lula da Silva, na abertura da Assembleia-geral da ONU.

Reino Unido, França, Bélgica, Portugal, Malta, Luxemburgo (membros da União Europeia), Austrália, Canadá, Andorra e São Marino, transformaram esse reconhecimento numa espécie de caridade dos governos destes países e assunto principal da questão palestiniana.

Reconhecimento enganoso, feito sem denúncia nem condenação do genocídio, bem como sem sanções contra Israel e depois da Palestina ter sido reconhecida pela maioria (145) dos países membros das Nações Unidas.

Para fugirem da condenação directa e objectiva do primeiro genocídio televisionado e da consequente adopção de medidas para parar o morticínio do seu aliado, Israel, o esse grupo de países tenta distrair as suas opiniões públicas internas e internacional que têm se batido contra os actos bárbaros do regime de Netanyahu

Para além de extemporâneo, este reconhecimento mostra o cinismo, sobretudo da Europa comunitária em decadência, "qualquerizada" pelo seu principal aliado (EUA) e que para salvar a faz de tudo para continuar a ser determinante na definição da agenda política internacional.

Com esse reconhecimento, um paliativo, a Europa, useira e vezeira na adopção de sanções contra a Rússia pela agressão à Ucrânia, tenta também aliviar as suas responsabilidades pela cumplicidade não só no genocídio, mas também no apartheid de Israel sobre os palestinianos, há décadas.

Atados como "fauna acompanhante dos EUA, a Europa mostra-se incapaz de aprovar medidas concretas contra Telavive, nomeadamente sanções políticas, económicas, comerciais, culturais e desportivas, sobretudo embargo ao armamento e petrolífero, como faz com Moscovo.

Por isso, opta por este reconhecimento, um acto meramente simbólico que nada muda no terreno de guerra, onde Israel destruiu milhares de edifícios civis, nomeadamente escolas e hospitais, para cumprir com o seu plano de aniquilar e tomar de Gaza.

O reconhecimento nada altera a realidade de um genocídio em que Israel violando todas as decisões do TIJ e leis da guerra, as resoluções da ONU e ignorando denúncias e apelos de diferentes organizações regionais e internacionais, usa impunemente a fome como instrumento para extermínio dos palestinianos, causando a morte a milhares de crianças, incluindo recém-nascidas.

Tardio e descontextualizado, os reconhecimentos de países coniventes com "actos brutais de genocídio", segundo o presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, parecem "coreografia política" que visa manipular o que se passa em Gaza, na opinião de Joana Ricardo, investigadora da Universidade de Coimbra.

Tal como apoiaram o regime segregacionista do apartheid na África do Sul que, durante mais de quatro décadas, discriminou, oprimiu e reprimiu a maioria negra sul-africana, esses países da Europa evitam acolher "medidas tangíveis" contra Israel que contribuam para a solução do conflito, na expressão da escritora palestiniana Shahd Wadi.

Para a intelectual palestiniana, o limitado reconhecimento não passa de uma "medida simbólica". Para travar "os crimes em toda a Palestina colonizada", acrescenta, são necessárias acções concretas e tangíveis tais como "o fim das relações comerciais" e o "embargo de armas".

Usando o argumento do direito de defesa para justificar o apoio à Israel, a Europa esquece-se que esse direito, como bem lembrou Lula da Silva, em Nova Iorque, "não autoriza a matança indiscriminada de civis" e "nada justifica usar a fome como arma de guerra, o genocídio e a limpeza étnica" em Gaza.

Diferente da Espanha, que na Europa tem dado o exemplo na denúncia e na adopção de sanções contra Israel, os novos reconhecedores europeus da Palestina, ao insistirem em ignorar ostensivamente o genocídio que o povo enfrenta, comportam-se como se na Palestina existisse um Estado sem povo.

Desde o início da guerra que a Espanha, único país vizinho de Portugal, é o Estado europeu que mais se tem posicionado contra o conflito e defendido publicamente a solução dos dois Estados. Depois de ter reconhecido o Estado da Palestina em Maio de 2024, Madrid albergou uma reunião entre líderes europeus e do Médio Oriente, em Setembro do mesmo ano, para impulsionar o fim do conflito.

O Governo do primeiro-ministro Pedro Sanchez decidiu ainda proibir de forma permanente a compra e venda de armas a Israel como meio para pressionar o regime de Netanyahu a parar o genocídio em Gaza.

Madrid também proíbe "a circulação nos portos espanhóis de barcos que transportem combustíveis destinados às forças armadas israelitas, a entrada no espaço aéreo espanhol a todas as aeronaves de Estado que transportem material de defesa para Israel" e "a entrada em território espanhol a todas as pessoas que participem de forma direta no genocídio".

Para além disso, a Espanha igualmente se juntou à queixa contra Israel, apresentada pela África do Sul no TIJ, pelo genocídio em Gaza, bem como apresentou uma proposta de resolução na ONU para "acabar com a matança de civis" no território.

Que Estado estarão esses países a reconhecer? O Estado definido pelas fronteiras traçadas pelas resoluções da ONU ou o "queijo suíço cheio de buracos", proposto por Donald Trump, em execução por Netanyahu e denunciado pelo Presidente da Autoridade Palestiniana, Mammoud Abbas?

Quando a realidade no terreno continua marcada pela "ocupação, colonização e fragmentação do território palestiniano", escreve Shahd Wadi, na plataforma Fumaça. este reconhecimento significa também que a comunidade internacional está a adoptar uma solução "sem consultar as pessoas que vivem no território ou aquelas que dele foram expulsas, ignorando por completo outras alternativas".