Quando tinha 26 anos de idade e era um dos responsáveis da Frente Militar Centro do MPLA, o comandante Kassanje desapareceu misteriosamente da vista dos seus companheiros, nas encostas do Morro do Chingo, na então cidade de Novo Redondo. Durante largos anos, teceram-se inúmeras especulações relacionadas com o sumiço de Kassanji. Nunca foi divulgada a versão oficial sobre o seu trágico destino. Sem razões aparentes, ao longo de quase meio século, nem a direcção do MPLA, nem a chefia das então FAPLA comunicaram oficialmente a sua morte, bem como as circunstâncias em que ela terá ocorrido, como era a prática na época. Mas as autoridades aceitaram atribuir o seu nome ao Liceu de Benguela e a uma das principais avenidas da cidade. Há muitos anos, a família recebeu uma medalha por ocasião de um aniversário do MPLA.

Eu conheci de vista o comandante Herculano Kassanje Delfino, em Benguela, na delegação do MPLA ao bairro da Camunda, da qual os meus tios eram vizinhos. Mais tarde, voltaria a vê-lo em Novo Redondo, nas vésperas do dia da proclamação da Independência Nacional. Ele estava num grupo de comandantes, no qual creio que se encontrava o Pepetela, nos críticos dias de Novembro de 1975, poucos antes de recuarmos para o Porto Amboim. Eles andavam à coca de militares desordeiros que se dedicavam a fazer disparos para o ar por tudo e por nada. O método era cheirar o cano das armas e, se houvesse indícios de disparo recente, o prevaricador era detido. Tinha havido também um grande tiroteio na parte de trás do Cine Sporting, onde estava concentrada a tropa katanguesa. Não mais voltei a vê-lo na concentração da emboscada no morro do Chingo, sob orientação dos cubanos. A emboscada foi desmontada, e a ordem recebida foi do pessoal movimentar-se para o rio Keve, em dois grupos: um em direcção a Porto Amboim e outro para as cachoeiras, na direcção da Gabela. Muitos combatentes resolveram voltar para a cidade. Eu estava nesse grupo. Íamos à procura de viaturas abandonadas que estivessem em condições de andar, isso no dia 12 de Novembro de 1975.

Mais tarde, com o desaparecimento de Kassanje consumado, passei a interessar-me pela sua cativante trajectória. Há mais de três décadas, depois de ler o livro de Pepetela, comecei a escrever alguns artigos sobre a sua curta vida e sobre as causas prováveis do seu desaparecimento. Conheci os seus pais e sou amigo dos irmãos, com os quais mantenho contacto regular.

Houve uma época em que a direcção do Liceu Comandante Kassanje me convidava, todos os anos, para falar sobre ele aos estudantes. Da última vez, tentei fazer uma inovação na minha apresentação. Decidi-me a levar comigo, sob a condição de anonimato, um dos irmãos do Kassanje. A meio da palestra, com o ginásio a abarrotar de estudantes, fiz uma inesperada pergunta para a agitada plateia: -"O que os meus queridos estudantes fariam, se eu lhes apresentasse aqui e agora um irmão do Comandante Kassanje?"- Ouviu-se uma estrondosa ovação de milhares de vozes, todos estavam com os braços no ar e gritavam a plenos pulmões : -"Apresenta! Apresenta! Apresenta!"- Pedi ao Armindo Kassanje que se levantasse e o ginásio quase veio abaixo. Todos o queriam abraçar e pegar as suas mãos, num ambiente de alegria indescritível. O sucedido teve muita repercussão e foi reportado a nível nacional pelo jornalista Nelson Sul. Todavia, sem que o soubéssemos na altura, nem todos tinham ficado satisfeitos com a alegria de todos. No ano seguinte, não recebi o habitual convite. No ano seguinte, nada e no outro também não. A título de mera curiosidade, liguei a um amigo a perguntar as razões, mas eu sabia de antemão a resposta. Disse-me, sem delongas, que os camaradas do "coiso" não gostaram da brincadeira e baixaram o pau. Mas agora parece que fizemos as pazes. No momento em que estava a terminar este depoimento, recebi um telefonema da direcção do Liceu Kassanje a convidar-me para proferir uma palestra sobre a vida e obra de Agostinho Neto.

Quando recuámos de Novo Redondo, em 1975, entre os combatentes vindos de Benguela, já se ouviam comentários sobre o ambiente de crispação entre os membros do comando da Frente Centro, constituído por Monty, Kassanje, Basovava e Ngakumona. Eles discordavam quanto à responsabilidade dos desaires sofridos, desde que os sul-africanos penetraram no território da Frente e se deu o grande combate de Katengue, no início de Novembro. Entre os pomos da discórdia, um deles era a destruição de um paiol de armamento e logística recém-chegada para as FAPLA, situado na zona industrial de Benguela, no bairro da Kalomanga. A necessidade de se dinamitar os armazéns não era sequer posta em causa, devido à ameaçadora aproximação das colunas sul-africanas. Havia o risco de eles se apoderarem das armas ali guardadas, sobretudo os foguetes de 122 milímetros, que, na altura, eram apenas usados nos lançadores Grad-1P. Os foguetes conseguiram ser retirados em camiões para o Kwanza-Sul.

Naqueles dias, vivíamos o prenúncio de um verdadeiro caos. Os grupos de militares e populares recuados de Benguela chegaram a Novo Redondo ao longo dos dias 6, 7 e 8 de Novembro. Ao recebê-los na cidade, apercebemo-nos de que tinha havido erros de mando, na saída desastrosa de Benguela. Nenhum dos membros do Comando queria assumir a responsabilidade da ordem de rebentamento do paiol da Kalomanga. As coisas agravaram-se a tal ponto, que caminharam inevitavelmente para a rotura, com a entrada em cena do comandante cubano, Raul Diaz Arguelles.

Usando como código o nome de Domingos da Silva, o cubano rapidamente concluiu que a crise de mando na FMC apenas beneficiava os sul-africanos e se tornara um empecilho para a concretização da complexa missão que lhe fora confiada por Fidel Castro, que era de comandar o engajamento das unidades cubanas em combate, junto das forças angolanas.

Oficial de elevada craveira nas forças especiais cubanas, o comandante Raul Arguelles avaliou que a situação vigente era eminentemente militar e que os políticos não decidiriam mais questões operacionais. Kassanji era um Comissário Político. Um dos assuntos por cima da mesa era o de saber quem deveria tomar a derradeira decisão para a destruição de pontes, a fim de impedir ou atrasar a progressão da " Operação Savannah" em direcção a Luanda, que tinha como objectivo não permitir a proclamação unilateral da independência pelo MPLA. As reuniões dos membros do Comando da FMC eram tensas, sobretudo uma realizada no dia 13 de Novembro, em Porto Amboim, uma localidade costeira onde as forças cubanas começaram a desembarcar, indo directamente para a frente de combate. O Comandantes Monty e o logístico Ngakumona decidiram-se a abandonar Porto Amboim naquela mesma noite de chuva. Rumaram para a capital do País, aparentemente sem darem conhecimento aos colegas.

A visão de Arguelles era a de um estratega militar que analisava outros contextos do teatro operacional, no caso o perigo do avanço das forças sul-africanas ao longo do eixo Alto-Hama/ Waku-Kungu, vila que se encontrava nas mãos da UNITA. Assim viria, de facto, a acontecer, ocorrendo a Batalha do Ebo e outras que se seguiram. Numa delas, pereceu o próprio comandante Raul Arguelles, a 11 de Dezembro de 1975.

Continua na próxima edição

*Advogado e jornalista