Sobre estas questões estruturantes parece estarmos conversados, mas não deixou de nos causar algum desconforto e surpresa o facto de o Executivo ter tomado a decisão de privatizar 195 empresas e não ter uma ideia exacta de quanto poderá vir a arrecadar com este "investimento", deixando tudo em aberto como se às cegas tentasse pôr mão a uma equação cuja resolução está muito longe de se tratar de uma questão linear.

Por outro lado, não se sabe ao certo se, por mera coincidência ou por artimanha governativa, este programa é posto em marcha precisamente numa altura em que o Parlamento entra de férias, o que politicamente deixa de ser um facto passível de um debate construtivo e transparente, que seria no fundo mais esclarecedor sobre o quadro programático da própria iniciativa, porque, entenda-se, não há uma relação de causa e efeito entre a tomada de decisão do Executivo e a reacção à medida que agora é anunciada.

Olhando com algum vagar para alguns indicadores, parece-nos que esta conjugação de circunstâncias não terá sido de todo inocente, porque retira toda uma pressão política que é suposto ver surgir sobretudo quando estão em causa medidas que podem mexer com a vida de todos nós, como, por exemplo, a garantia da manutenção dos postos de trabalho, que o Executivo se limita hoje a dizer que tudo fará para negociar a permanência do maior número possível da força de trabalho. Em política, "o maior número possível" pode ser uma forma simpática de abdicar de qualquer responsabilização, quando os problemas surgirem, ou pode significar zero, uma vez que as entidades colectivas ou individuais que adquirirem estas empresas não serão, desde já, obrigadas a assumirem todo o passivo.

Mas chama-nos também a atenção para este olhar conscientemente desavisado em relação ao que se vai arrecadar, o que nos parece uma prosa pouco retórica e desprovida de alguma rigor enunciativo, na medida em que era suposto apresentar, senão um quadro próximo do que pode vir a ser um valor aproximado, pelo menos a situação patrimonial concreta das empresas.

Se o Executivo conseguiu elencar um conjunto de empresas, claro está que este processo partiu de premissas que permitiram ao Executivo tomar uma decisão com base nos custos de manutenção delas versus o rácio da despesa do país em função da riqueza nacional.

Se o Executivo diz não saber o que vai lucrar com este negócio das privatizações, que tal apresentar a situação do relatório e contas das primeiras 80 empresas que vão agora a "leilão" neste primeiro pacote? A partir deste indicador, passaríamos a ter uma primeira noção das razões objectivas. E mais: muitas destas empresas têm problemas de caixa, não pagam salários e outras não têm resolvido, junto do Instituto Nacional de Segurança Social, o passivo pelo qual alguém terá de ser responsável.

Na verdade, bem vistas as coisas, e porque foi assumido pelo ministro das Finanças que há o risco de fundos conseguidos ilicitamente serem utilizados para a aquisição destas empresas, o Executivo parte para esta empreitada apenas munido de "boa-fé" ou como uma forma desesperada de se desfazer de um nó, o que não nos parece ser verdade de todo, e os exemplos, da lista apresentada, são inúmeros. Mas a boa-fé para quem está à frente de um governo, e sobretudo em situações de ruptura de agenda macroeconómica do país, pode representar inúmeros riscos se a questão da transparência não for nunca salvaguardada. Não ignoramos que, no quadro das recomendações do Fundo Monetário Internacional, algumas medidas estejam a ser decorrentes de compromissos assumidos. Mas alguém deve ter a coragem de dizer ao país a quantas andamos!