Já antes afirmei que os antigos movimentos de libertação no poder em vários países da África Austral se encontram esgotados. Conquistaram legitimidade após lutas mais ou menos longas, cumprindo os seus programas mínimos - e mereceram o crédito dos respectivos povos. Porém, não souberam gerir a glória da vitória, tornaram-se autocratas em maior ou menor medida, não souberam estabelecer alianças para colmatarem as suas insuficiências e submeteram-se a interesses escusos de origem interna e externa. Após anos de corrupção, de opacidade e de cooptação e fragilização das forças políticas opositoras e dos segmentos da sociedade civil que escapavam ao seu domínio nos respectivos países, acabaram por perder a confiança dos seus antigos apoiantes e eleitores e por não ganhar a das gerações mais jovens.

Em Angola, cada vez mais o partido governante vai dando sinais da sua incapacidade em fazer algo para além da preocupação com a manutenção, ou perpetuação, no poder. Os angolanos estão a pagar o erro cometido na transição democrática iniciada nos anos 90 quando se supunha ter terminado a guerra civil de sua responsabilidade e da dos países padrinhos das mudanças: Estados Unidos, Rússia e Portugal. No contexto da época, era dada como improvável uma derrota da UNITA nas primeiras eleições multipartidárias e não se previu um período de transição suficientemente longo para permitir a chamada "pacificação dos espíritos", nem se pensou evitar a regra "o vencedor fica com tudo". Igualmente não se esboçou a possibilidade de se iniciar o processo eleitoral a nível das autarquias, para permitir a diminuição das tensões. Uma consequência trágica desse erro foi o prolongamento da guerra civil por mais dez anos. Mas não ficámos por aí.

O regime político que emergiu da guerra e das eleições de 2008, e legalizado pela Constituição de 2010, não pode ser considerado democrático, mas multipartidário de jure e monopartidário de facto. O partido no poder é hoje mais autocrático do que foi em certos momentos do passado, quando era único de jure. Actualmente - por estranho que possa parecer, pelo conhecimento sobre o reinado de José Eduardo dos Santos, mas limito a análise ao período anterior a 2002 -, o seu líder tem um ascendente e um maior domínio sobre o aparelho partidário devido ao menor peso e qualidade política dos seus integrantes, à dependência a que os submeteu e ao poder quase ilimitado que usufrui da condição de chefe unipessoal do Governo. A sociedade actual tem menos contrapoderes do que a anterior - e o melhor exemplo pode ser encontrado na ostracização da UNTA- Central Sindical. A oposição à institucionalização das autarquias representa, afinal, uma rejeição da possibilidade de existência de um "mau exemplo" de democracia um pouco mais intensa ou, pelo menos, de um maior escrutínio das chefias por parte da população.

A ausência de estratégia por parte do partido no poder e do seu governo e o carácter errático da governação são factos comprovados. Desde logo, não se vislumbra coerência entre os desígnios de construção de uma Angola democrática e desenvolvida e as restrições aos direitos dos cidadãos, das organizações da sociedade civil e dos partidos políticos na oposição, o garrote à comunicação social, os impedimentos à institucionalização das autarquias, a partidarização doentia das instituições públicas e seu controlo por parte do aparelho securitário, assim como as políticas definidas para a educação, a saúde, a habitação, a agricultura, a diversificação da economia, enfim, ao respeito pelo cidadão, como se faz noutros países, que não pode ser valorizado apenas como eleitor. Um declarado mimetismo funcional, como já acontecia com José Eduardo dos Santos, o que significa que a esperança no jogador de xadrez e no estratega se desvaneceu, ou não tinha razão de ser.

O carácter errático da governação é evidente no quotidiano, como se pôde comprovar esta semana. A Comissão Económica do Conselho de Ministros "aprovou" o Programa de Aceleração da Agricultura Familiar e Reforço da Segurança Alimentar. Não se percebe a ligação a outros programas e projectos de apoio à agricultura familiar, nem ao Plano Nacional de Desenvolvimento 2023-2027. Estranho que se fale de "reforço" da segurança alimentar, quando temos 1,5 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda e o preço da cesta básica de alimentos custa entre 280 e 408 mil milhões de kwanzas e o salário mínimo é de apenas 32 mil kwanzas, mau grado as reivindicações dos sindicatos. O programa "vale" 85 mil milhões de kwanzas, o equivalente a aproximadamente 80 milhões de dólares, quando o seu antecessor, aprovado em 2020, igualmente para três anos, "valia" mais de 390 mil milhões de kwanzas, cerca de 180 milhões de dólares ao câmbio da época. Desse montante, segundo o que consegui apurar, apenas terão sido executados menos de 20 mil milhões de kwanzas, através de empréstimos atribuídos pelo Fundo de Desenvolvimento Agrário. Outra incoerência táctica tem a ver com a insistência na aquisição de tractores e outro equipamento sem que estejam reunidas as condições para se alcançar o objectivo, dada a aversão que se tem para a dar importância às lições aprendidas. Numa comuna de Tchicala Tcholoanga, onde estive há poucas semanas, constatei que os três tractores "recebidos", como incentivo ao voto em 2022, estão todos avariados há mais de um ano. Entendido?

Sem estratégia e sem táctica, e insistindo no isolamento em relação a outros actores, só resta mesmo ao partido governante a luta pela manutenção do poder.