Tentei demovê-la, mas foi em vão. Sorriu, disse que não tinha outra opção, porque até a Sorte já tinha feito o check in, também estava prestes a embarcar em busca de novos ares, porque os nossos estão contaminados pelos novos donos. Disse ainda que somos fortes, resilientes, que quem sabe um dia poderemos conseguir melhorar o que está mal e dar a volta à situação, então aí ela, a Sorte, o Respeito, o Patriotismo e outros tantos avilos fixes que também estão a dar tiroza, voltem de bom grado a vunar para abraçar o povo novamente e ajudar a termos uma banda kuyoza p"ra todos. Acrescentou que não consegue ver certas cenas malaiques e calar, olhar pro lado e assobiar monangambé ou makalakato sem procurar soluções, sem mostrar o que tá errado.
Voltei à carga e perguntei como é que ela vai viver na estranja. Não seria também mal tratada? Disse que já tinha tudo organizado com os que a antecederam e que já tinha um bom salo com remuneração condigna, de acordo com os resultados e que teria a certeza de que o valor serviria para as despesas básicas e não só, do mês sem ter de estar a tequetar com receio de que a fome fosse parte da sua família. Poderia então oferecer dignidade e uma vida de verdade aos seus filhos, com o que vier a ganhar sem dor nem humilhação, sem fazer sócia de gás, pão, fósforo ou de fogareiro e carvão ou ainda de marido.
Antes que eu voltasse a dizer algo, a Esperança olhou no fundo dos meus olhos e disse que ia, mas com receio de não mais voltar, porque a situação está tão má que até no Dondo já há crianças herdeiras das espinhas e que nem sequer a conheciam.
Espera lá, como assim crianças herdeiras das espinhas no Dondo? A ex banda da eka e da vinelo? O que significa? Respondeu que tal como em Luanda e noutras localidades há muitas crianças nas ruas em busca de comida, de água, em busca de tudo, que não se fazem de rogadas e mergulham fundo nos contentores de lixo para preencher o estômago tão faminto que nem sabe o que é ter saudades de sentir um pitéu quente e em condições a confortar o roncar da lombriga. No Dondo também há putos que zungam em busca de algo, de algum sabor entre os dissabores que a miserável vida oferece e em que a dignidade é um luxo. Lá não há tantos contentores como na centralidade do Kilamba, por isso os ndengues não criaram grupos para dividi-los entre eles, lá à beira do fecundo kwanza o mambo é outro, rondam as barracas de pitéu, aproveitam para paiar algo aos turistas que degustam os manjares da terra - cacussos, mussolos, bagres, robalos, carne seca de kyombo ou de pacaça, etc., cujos aromas invadem saborosamente as narinas. Esses putos "ajudam" a tirar o que resta dos pratos dos clientes, as espinhas, os ossos, as peles, as escamas, o cheiro da cebola do molho e vão pondo de lado, num sítio onde depois eles se sentam e chupam tudo, tudo o que ainda pode ser chupado, não importando se já foi antes lambuzado por alguma outra pessoa, sugam o que podem para se saciarem um coxe. A dioba desses ndengues não quer saber dos riscos para a saúde, não só por causa da pandemia da covid19, mas por causa de outras doenças. A fome manda mais, não ouve, é teimosa e ingrata.
Ante a minha expressão de surpresa a Esperança perguntou-me se alguma daquelas crianças estaria a pensar nela, se queria saber que ela existe e que já foi tida como sagrada por tudo o que representou? Rematou no nostálgico sussurro confortável de um kandando o seguinte: "será que enquanto tivermos putos herdeiros das espinhas com trapos tão cacimbados, tão vuzados que já nem têm espaço para rasgar ou furar o encardido descolorado carcomido pela fome, alguém vai ACREDITAR NA ESPERANÇA? Njila ia dikanga meu ndengue, um dia quem sabe, volto a fazer parte das vossas vidas. Katé+". Lá se foi a Esperança sem destino certo, levada pela Sorte que também bazou a pensar nos que ficamos atirados à nossa desgraça embrulhada na dioba que consome os herdeiros das espinhas desse grande país e que nos faz questionar, como será a banda dentro de uma década!? É essa geração que estão a criar para vos substituírem?