Em regra, no mundo inteiro, os litígios estritamente ligados às regras técnicas e regulamentares, cartões, faltas, inscrições, penalidades, suspensões, resolvem-se dentro da casa desportiva. São matérias de competência dos Conselhos de Disciplina, dos Conselhos Jurisdicionais e, em última instância, do Tribunal Arbitral do Desporto (ou órgãos equivalentes). É o universo próprio da disciplina federativa, onde se decide o que pertence exclusivamente ao jogo.
Porém, tudo muda quando o comportamento debatido ultrapassa a esfera do desporto e atinge bens jurídicos protegidos pelo Estado: honra, bom-nome, integridade física, veracidade informativa, reputação institucional, entre outros. A agressão deliberada não faz parte do jogo; a difamação não faz parte do jogo; a imputação de corrupção sem prova não faz parte do jogo.
No caso concreto que mobiliza a opinião pública, a imputação de que um árbitro é "gatuno", "comprado" ou "corrompido" ou ainda que um determinado clube só ganha comprando os jogos, não é um protesto técnico, não é desabafo desportivo, não é emoção pós-jogo. É a atribuição pública de um crime. E, como tal, pertence simultaneamente à esfera disciplinar da FAF e à jurisdição comum, porque lesa bens jurídicos que não se esgotam dentro das quatro linhas.
É legítimo, e até necessário, que o Conselho de Disciplina da FAF examine as declarações, apure a matéria e convoque o treinador para apresentar as provas que sustenta. O dever de colaboração com a verdade desportiva e com a integridade das competições impõe-se a todos os agentes. Se houver substância, que se investigue eventual manipulação de resultados. Se a acusação for infundada, estaremos perante um acto calunioso que compromete o prestígio das equipas, da arbitragem e da própria FAF.
Mas o ponto essencial é outro: estes conflitos não são apenas desportivos. A difamação e a denúncia caluniosa são tipos legais previstos no Código Penal. E qualquer árbitro, dirigente, ou clube visado pode exercer o seu direito de recorrer aos tribunais do Estado para defesa da sua honra, ou para reparação civil. Não se trata de interferência indevida da justiça comum no desporto, mas sim do funcionamento normal do Estado de Direito. O desporto não cria imunidades nem excepções ilícitas à legalidade democrática.
Por isso, não devemos olhar para estes incidentes com a normalização perigosa do "foi no calor do jogo". A paixão explica, mas não justifica. As palavras têm peso e consequências; e quando acusam alguém de corrupção, transportam consigo a gravidade própria de uma imputação criminosa.
O futebol, e o desporto angolano em geral, não pode continuar a conviver com esta ligeireza perante a honra alheia. Ou cuidamos colectivamente da verdade desportiva, ou caminhamos para a erosão progressiva da confiança pública nas competições. A justiça desportiva tem o seu papel; a justiça comum tem o seu. Ambas devem actuar sem medo e sem interferências indevidas. A fronteira está clara: o jogo trata do jogo; a lei trata do que já não é jogo.
E o caso Dias Caires/Williete é apenas mais um exemplo de que essa fronteira está a ser cada vez mais testada e precisa de ser cada vez mais defendida.
*Jurista e Presidente do Clube Escola Desportiva Formigas do Cazenga

