Portanto, quem se preocupar em desenhar estratégias eficientes e eficazes, sobretudo se tiver menos recursos, não deixará de priorizar, no seu orçamento, as despesas de prevenção. Isso foi assinalado na imprensa, no início da epidemia, com encómios para dois países africanos - Gana e Senegal - que concentraram os seus esforços iniciais nas medidas de prevenção, relativamente aos cuidados intensivos e uso de ventiladores. A inicial história de sucesso destes países não foi duradoura, pois a prevenção por confinamento nacional não é sustentável economicamente, e os casos aumentaram com o relaxar das restrições, como está agora a acontecer na Europa. Provavelmente não testarem o suficiente para preparar o terreno para o retomar da vida normal - como terá sido na China.

Com confinamento ou não, a prevenção é o passo essencial: quando o secretário-geral da OMS aconselha os países a testar...testar...testar, não se refere à confirmação passiva dum diagnóstico, mas à cadeia dinâmica de luta contra a doença: identificação do doente - isolamento e testagem dos contactos - novos casos identificados -novos contactos ... novos casos ... definindo-se sucessiva e eventualmente, cortando as cadeias de transmissão.

Por isso, não deixam de merecer comentários os procedimentos levados a cabo presentemente em Angola, reveladores dum grande desatino relativamente ao controlo da epidemia: estar, por exemplo, a fazer estudo de prevalência dos motoristas de transportes públicos não é uma operação de luta activa contra a doença, será apenas um inquérito epidemiológico de prevalência (feito provavelmente pela serologia), porque os contactos destes profissionais (os passageiros) vão variando ao longo do dia e não são localizáveis. Em caso de positividade, não há meios de quebrar as cadeias de transmissão. Concebe-se que os rastreamentos, para além das testagens a propósito do caso índice dum doente, possam fazer-se em agrupamentos fixos de pessoas, com maior e mais continuada exposição aos que estiverem infectados, como os operários duma fábrica ou os agentes de saúde dum hospital, e aí, sim, está indicada uma testagem de massa. Acrescente-se que as evidências disponíveis menorizam a possibilidade de transmissão nos transportes públicos (com uso de máscaras), relativamente aos contactos na família e no trabalho.

Estas actividades supérfluas (para o combate à epidemia) camuflam a grande dificuldade de levar a cabo a estratégia preconizada pela OMS, constatável pela cada vez maior inoperância em identificar os contactos domiciliares de casos: localizar as famílias nos bairros, testá-las e controlar o cumprimento dos isolamentos. É uma tarefa que as equipas, só ágeis na cidade do asfalto, não estão a assegurar. Isto explicará o grande protagonismo dos bairros centrais e das clínicas privadas sobre aquilo que se sabe acerca da pandemia entre nós. Espantava-se, há dias, um ilustre jornalista por não parecer haver doentes nos grandes hospitais públicos. Foram todos para a" Zona Económica"? Ou andam os seus contactos, não detectados nos bairros, a circular entre nós, assintomáticos?

As dificuldades actuais são fruto da estratégia, desde o início criticada, de centralização das acções em comissões ad hoc e marginalização dos agentes e estruturas do Serviço Nacional de Saúde. Para a cobertura do território nacional, só podemos contar com o Serviço Público. Os grupos ad hoc nem 10% de Luanda podem cobrir.

Noutras latitudes, registam-se problemas semelhantes. Veja-se o caso de Inglaterra, um país cujo Sistema Nacional de Saúde (NHS) foi, em meados do século passado, o protótipo duma prática de saúde eficiente e gratuita para todos os cidadão, mas que, no fim do século, as mudanças neoliberais de Margareth Tatcher e continuadores enfraqueceu e tornou vulnerável aos mecanismos de mercado: na vertente curativa, o NHS aguentou, galhardamente, os milhares de internamentos pela doença (até o próprio primeiro ministro, que chegou a ser tratado na unidade de cuidados intensivos), mas na parte preventiva o Governo de Boris Johnson entendeu entregar as operações de testagem e isolamento a duas empresas privadas, pagas com milhões de libras. Segundo o British Medical Journal, de 17 de Agosto deste ano, a actuação das duas firmas revelou-se ineficaz e foi posta entre parêntesis, com o seguinte comentário do Departamento de Cuidados Sociais e de Saúde: "...Se a agência exclusivamente destinada a este fim a nível nacional não consegue estabelecer contactos em tempo útil com os moradores, os agentes locais de Saúde podem usar os dados de testagem e localização do SNS para seguimento, que, nalgumas áreas piloto envolveram as autoridades locais e parceiros voluntários que visitam as pessoas em casa..."

Não podemos ainda esperar por um desempenho parecido do nosso Sistema de Saúde, que, contudo, tem na sua concepção mecanismos apropriados, com directores de Saúde Pública a secundar os directores provinciais e municipais, que em rede devem chegar até às comunas. A presente epidemia podia ter fortalecido esta importante vertente do Sistema Público, mas, ao marginalizá-lo em favor de iniciativas paralelas e estruturas ad hoc, publicidade de novos hospitais e de novos laboratórios, em vez do esforço quotidiano e menos vistoso de dotar o laboratório dos hospitais provinciais com os instrumentos básicos para estudo do vírus, o MINSA continua a assumir a bizarra postura de não assumir o Serviço Nacional de Saúde.

Em troca, temos um mecanismo "a la carte" de combater a pandemia, que seguramente não reflecte sobre a situação no terreno, mas ao qual, contudo, ainda é dado poder para influenciar a construção burocrático-repressiva instalada pela conjuntura epidémica, com as terríveis consequências que temos presentes.