Antes de analisarmos o algoritmo das projecções do OGE 2024, impõe-se fazer um ponto prévio. A Equipa Económica (EE) trabalhou na elaboração da proposta de OGE 2024, tendo como base de partida não o OGE 2023, mas, sim, a Programação Macroeconómica Executiva (PME) 2023. Ora, não se entende porquê que o Executivo não aprovou uma Revisão do OGE 2023, quando, em Junho de 2023, já era garantido que as estimativas constantes do orçamento do corrente ano estavam desfasadas da realidade. Esse pormenor não é desvalorizável, uma vez que existem leis sobre o OGE e que se deve ao Povo, através dos seus deputados acomodados na AN, a prestação de contas sobre a origem e a aplicação dos recursos financeiros públicos. Só podemos concluir que o Executivo não respeita a liturgia imposta pela lei e nem receia eventuais consequências jurídico-legais desta atitude - uma cruzada Unigénita. Essa postura remete-nos para a necessidade de os especialistas e experts em práticas de boa governação reflectirem sobre a ausência de checks and balances no nosso ordenamento jurídico-constitucional.

A proposta de OGE 2024 estima um saldo fiscal global positivo de 0,02% e saldo fiscal primário de 6,4% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto o défice fiscal primário não- petrolífero é projectado em 4,1% do PIB, abaixo dos 5% previstos na Lei da Sustentabilidade das Finanças Públicas. No entanto, para uma melhor análise da sustentabilidade e robustez das projecções e estimativas fiscais da proposta de OGE 2024, procedemos à elaboração de um mapa de origem e aplicações de fundos (ver anexo), para verificarmos a solidez e a consistência macroeconómica do quadro fiscal.

Ora vejamos,
O OGE 2024 estima uma receita petrolífera no valor de Kz 7.859,20 mil milhões e fixa a despesa com o serviço da dívida externa no valor Kz 8.341,30 mil milhões, ambas denominadas em moeda estrangeira. Assim, projecta-se um défice de tesouraria em moeda estrangeira no valor equivalente a Kz 482,1 mil milhões. Considerando os pressupostos que fundamentaram a elaboração da proposta de OGE 2024, quer para a produção, quer para o preço médio de referência do petróleo bruto, julgamos como moderado o risco de Angola não conseguir obter os valores necessários para pagar o serviço da dívida externa que representa 33,75% do total da despesa.
Os fluxos em moeda nacional apresentam um cenário inteiramente diferente e assombram com uma alucinante vertigem. O OGE 2024 prevê a arrecadação de moeda nacional de duas fontes: captação de financiamento interno e receita não-petrolífera. A verdade é que não se antecipam quaisquer dificuldades na mobilização de financiamento interno no valor de Kz 3.832,70 mil milhões junto da banca comercial local que tem na compra de títulos de dívida pública o seu segundo grande segmento de negócio depois das operações cambiais.

Radicalmente oposta é a nossa visão sobre a estimativa da receita não-petrolífera prevista no valor de Kz 6.833,50 mil milhões, em que os impostos sobre a actividade económica não-petrolífera representam Kz 5.191,10 mil milhões, o que significa um crescimento nominal de 20,36% face à previsão revista para 2023. Essa espectacular ou alucinante estimativa da receita está assente numa premissa pouco crível; o crescimento real do PIB não-petrolífero na ordem dos 4,6% em 2024 face à melhor estimativa do próprio Executivo para 2023 na ordem dos questionáveis 1,8%. Infelizmente, a apresentação do Angola Outlook para 2024, elaborado e apresentado pelo Ministério da Economia e Planeamento, não nos dá qualquer pista laudável sobre quais as fontes desta forte expansão do PIB não-petrolífero.

A soma do total da receita em moeda nacional (financiamento interno mais a receita não-petrolífera) está, então, estimada em Kz 10.666,20 mil milhões. No entanto, a despesa em moeda nacional está fixada em Kz 13.473,10, o que se traduz num défice de tesouraria no valor de Kz 2.806,90 mil milhões. Em nossa apreciação, não só a projecção da receita não-petrolífera está assente em pressupostos com fraca consistência macroeconómica, mas também ela é manifestamente insuficiente para cobrir o gasto público com a despesa com pessoal, serviço da dívida interna, bens e serviços e transferências que incluem a capitalização dos fundos públicos para o apoio à economia não-petrolífera e os subsídios ao combustível.

Qual é, então, o milagre para cobrir o gap de financiamento do OGE 2024? A proposta de OGE 2024 prevê a mobilização de recursos financeiros através do financiamento externo no valor de Kz 6.171,2 mil milhões (USD 7,45 mil milhões), dos quais Kz 2.576,8 mil milhões correspondem à aquisição de activos não-financeiros, ou seja, projectos constantes do Programa de Investimento Público (PIP). Conjecturamos que o PIP é integralmente financiado por desembolsos de linhas de crédito, bilaterais e multilaterais, contratados junto de entidades financeiras estrangeiras. Entretanto, dado que os pagamentos aos empreiteiros destes projectos ocorrem no estrangeiro, não há nenhum encaixe financeiro em moeda estrangeira para cobrir o gap de financiamento.

Partindo da observação do parágrafo anterior, deduz-se que o Executivo do Presidente João Lourenço prevê fechar o gap de financiamento com a contratação de empréstimos financeiros à tesouraria no valor de Kz 3 594,40 mil milhões, aproximadamente USD 4,34 mil milhões junto do mercado de capitais internacional. As captações destes recursos financeiros podem ser realizadas através da emissão de Eurobonds ou de outros instrumentos de empréstimos à tesouraria.

Considerando o contexto económico internacional caracterizado pela manutenção em alta das taxas de juro nos Estados Unidos da América e na Zona Euro para fazer face à trajectória inflacionista naqueles mercados e tendo em atenção o fraco desempenho dos principais indicadores macroeconómicos da nossa economia, não é de todo crível que Angola vá ter sucesso na sua aventura de captar estes recursos financeiros. Assim, só podemos inferir que o Executivo pretende aprovar um OGE 2024 fictício (the fake one) para entreter os deputados na AN e fomentar algumas manchetes na imprensa nacional, mas imediatamente a seguir à entrada em vigor do orçamento a EE sancionará uma nova PME (the real one) com os números reais que orientarão a condução da política económica do Governo em 2024.

Ora, a proposta de OGE 2024 parece ser um exercício de eufemismo platónico sem qualquer aderência com a realidade. Não é possível supor que o Executivo não soubesse que o OGE tem um enorme risco de insustentabilidade orçamental uma vez que o Fundo Monetário Internacional (FMI), em Setembro, alertou que era imperativo um aumento temporário das necessidades globais de financiamento em 2023 devido aos elevados pagamentos da dívida externa efectuados no primeiro semestre do ano (IMF, 2023). Na ocasião, o FMI estimava que estes aumentos das necessidades globais de financiamento poderiam prolongar-se para além de 2023. Pasme-se!

Se o Executivo insistir em não promover uma verdadeira mudança da política económica, a começar pela reforma e emagrecimento do Estado, os bancos comerciais podem esfregar as mãos porque vão continuar a comprar dívida pública colocada com taxas de juro altas e não terão necessidade de se expor aos riscos do financiamento à economia real para garantir lucros robustos. A rentabilidade dos capitais próprios (ROE) e a dos activos (ROA) dos bancos comerciais continuarão sólidas, enquanto a sustentabilidade das finanças públicas continuará dependente dos fluxos em moeda estrangeira provenientes da actividade petrolífera que caminha a passos largos para o declínio irreversível.
Como afirmou Paul Krugman, economista keynesiano e prémio Nobel da Economia em 2008, "As origens do nosso sofrimento são relativamente triviais na ordem do universo e poderiam ser corrigidas de forma relativamente rápida e fácil se houvesse um número suficiente de pessoas em posições de decisão que entendessem a realidade".

*Professor Auxiliar de Economia e Investigador Business and Economic School - ISG

Bibliografia
- Angola Outlook 2024, Ministério da Economia ePlaneamento - International Monetary Fund (2023): Angola, First Post Financing Assessment Discussions - Press Release; And Staff Report