Apesar de autorizada pelo Conselho Executivo da cidade de Maputo, o Governo, "com medo de uma primavera árabe", na opinião de João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural (OMR), impediu a marcha, e a polícia moçambicana (PRM) atacou os marchantes com cães, gás lacrimogéneo e balas verdadeiras.

Dessa violência policial, resultaram alguns jovens feridos, um dos quais perdeu um olho depois de "torturado de forma cruel, com a coronha de uma arma de fogo (rifle), como se rachassem lenha", segundo a Ordem de Advogados, outros desaparecidos e outros ainda detidos, nomeadamente Albano Carige, presidente da Assembleia Municipal da Beira (capital da província de Sofala) e membro do partido Movimento Democrático de Moçambique (MDM).

Azagaia, um rapper intelectual, de 38 anos ou um "sociólogo do chão", na expressão de Boaventura Sousa Santos, sociólogo português, denunciava, mas suas músicas, entrevistas e outras acções, os excessos do Poder político moçambicano, incluindo da própria oposição.

Músico e compositor, o rapper tornou-se no símbolo de uma juventude que não se revê nas actuais formas de gerir o seu País, um dos mais pobres do Mundo, que, apesar de possuir incontáveis recursos naturais, tem ainda parte do seu Orçamento de Estado dependente de doações internacionais.

Carismático, Azagaia, um neosamorista, vai buscar ao pensamento do primeiro Presidente moçambicano muita da inspiração para os seus textos e activismo, inclusive as palavras de ordem que adoptou, nomeadamente a célebre "Povo no Poder", que faz recordar, entre outras, a afirmação de Samora Machel segundo a qual a educação é "uma base para o Povo tomar o Poder".

Se Samora Machel afirmava que "o dever de cada um de nós é dar tudo ao povo, sermos os últimos quando se trata de benefícios, primeiros quando se trata de sacrifícios" e que "isso é que é servir o povo", Azagaia denunciava o egoísmo dos políticos e as suas desproporcionais regalias, fazendo lembrar Zeca Afonso na sua canção "Os vampiros", cantando "Eles comem tudo e não deixam nada".

Em "Declaração de Paz (Vampiros)", Azagaia, de nome verdadeiro Edson da Luz, escrevia e cantava "Tu não vês/

Não querem saber de ti, não querem saber de mim/

Vampiros"

Por isso mesmo, para o académico moçambicano Eduardo Lichuche, "estudar Azagaia permite compreender as angústias dos jovens" que se deparam com imensas dificuldades no seu quotidiano.

Os ecos da luta de Azagaia, filho de mãe moçambicana e pai cabo-verdiano, facilmente se espalharam e ganharam adeptos no continente africano, incluindo Angola, onde a sua morte foi motivo de grande comoção, principalmente de jovens da cultura, activistas políticos, pan-africanistas e opositores ao establishment.

Dois dias antes das marchas reprimidas, no funeral de Azagaia, a polícia impediu que o cortejo, em que participou a ministra moçambicana da Cultura, passasse junto da residência oficial do Presidente Nyusi, que não emitiu qualquer nota de pesar pela morte do jovem que se tornou ícone de uma geração.

Isto contribuiu para aumentar a tensão, e os jovens, apostados em dar continuidade à luta e honrar o legado de Azagaia com uma revolução, transformaram-se na principal pedra no sapato do actual Presidente moçambicano que, na segunda metade do seu último mandato, tem também os "guebuzistas" e "samoristas" à perna.

Estes últimos, na voz de Samora Machel Júnior "Samito", disseram logo de sua justiça, poucas horas após a violência policial contra os marchantes pró-Azagaia, denunciando "actos de violência injustificável contra cidadãos indefesos, perpetrados por membros das Forças de Defesa e Segurança, que violaram a definição constitucional de Moçambique como Estado de Direito Democrático baseado no pluralismo de opinião e de expressão".

Para Samito, filho de dois heróis moçambicanos, Josina e Samora Machel, bem como membro do Comité Central da FRELIMO, a violência, que foi notícia em todo o Mundo, é "uma traição aos valores e princípios fundamentais do Partido e às tradições gloriosas da FRELIMO de defesa dos interesses do Povo moçambicano e como Partido da Paz e do Diálogo".

Pela memória dos seus pais, nesse texto muito duro com as autoridades moçambicanas, o herdeiro genético de Samora Machel fala mesmo da necessidade de "defender a nossa Constituição Democrática e resgatar os valores e princípios tradicionais da FRELIMO para darmos às gerações de hoje e de amanhã um país melhor".

Nesta indignação, a ala "samorista" da FRELIMO esteve muito bem acompanhada, nomeadamente pela Associação Moçambicana de Juristas (AMJ), que, com "bastante preocupação", escreveu, em comunicado, que "o dia de hoje (18 de Março) se afigurou de má memória por conta do reportado pelas redes e comunicação social, em que foram coarctados direitos inerentes à dignidade da pessoa humana".

Na mesma linha, a Ordem dos Advogados de Moçambique denunciou a violência que "nos enche de vergonha das instituições públicas e daqueles que deveriam defender o primado da Lei".

Os advogados de Maputo "condenaram veementemente" a violência contra manifestantes pacíficos e anunciaram que vão "promover todos os expedientes legais atendíveis para a devida responsabilização dos implicados".

Assim, facultaram uma lista com contactos de dezenas de advogados disponíveis a "intervir pela legalidade e assistência jurídica" das vítimas da violência policial contra as manifestações de homenagem a Azagaia.

O desmentido da PRM, 72 horas depois, acusando políticos da oposição, activistas e alguns media de "fomentarem indisciplina e sublevação para um golpe de Estado", foi insuficiente para impedir que a Associação dos Docentes Universitários de Moçambique (ADUM) considerasse a violência policial contra manifestantes de "inaceitável".

Em comunicado, a ADUM critica o Governo que "movido por interesses estranhos à democracia e que violam a Constituição de Moçambique, recorre às forças policiais para reprimir manifestantes em pleno gozo dos seus direitos fundamentais".

Outros membros da FRELIMO se têm manifestado de diversas formas, como rasgando os seus cartões de militantes ou queimando os Estatutos em praça pública, ou ainda anunciando a sua desvinculação do partido liderado por Filipe Nyusi, como fez Válter Micas, secretário de Célula que, a partir da cidade portuguesa do Porto, renunciou à sua condição de militante.

Micas acusou a FRELIMO de "não estar totalmente comprometida com a liberdade individual e com a democracia e que, por isso, vai buscar outras formas de contribuir para a construção de um Moçambique mais livre, democrático e que respeite os direitos constitucionais dos seus cidadãos".

Essa repressão policial acabou por, previsivelmente, provocar o reforço da unidade à volta das causas de Azagaia e uma onda de homenagem ao rapper em várias partes do País, com destaque para a cidade de Quelimane, onde, brevemente, vai ser construída de raiz uma rua ou avenida com o nome de Azagaia, anunciou o seu edil.

Régio Conrado, docente de Ciência Política na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), considerou, em declarações à DW, que "quando determinado regime atinge este nível de podridão, de incompetência e de ineficiência, obviamente que o que lhe resta à sua disposição é o uso excessivo da força".

Por seu turno, o director da ONG Centro de Integridade Pública (CIP), Edson Cortez, denunciou que o actual Governo moçambicano, o "mais fraco da história de Moçambique, recorre à violência para travar o exercício das liberdades fundamentais".

Depois destes acontecimentos, Filipe Nyusi, apesar de dispor, no Parlamento, de uma confortável maioria que podia facilmente usar para alterar a Constituição de forma a concorrer a um terceiro mandato nas eleições de 2024, perdeu as condições político-populares para o efeito.

E, se insistir em atender aos apelos lançados, neste sentido, há um ano pela OJM, braço juvenil da FRELIMO, corre risco de transformar Maputo em nova Dakar (Senegal), há semanas sacudida por violentos tumultos entre a polícia e revoltosos, sobretudo jovens, que, com pedras e paus, numa espécie de intifada, se manifestam contra um eventual terceiro mandato do Presidente Macky Sall.