O que se passa, aproveitou João Lourenço para explicitar, ontem, em Paris, França, onde se encontra em visita de Estado até quarta-feira, é que, em conjunto com Paul Kagame, tem conversado sobre a situação na RDC e a importância do cumprimento do acordo de São Silvestre, que prevê a saída de Kabila do poder logo após a realização das eleições gerais, agora marcadas para 23 de Dezembro deste ano.

O acordo de São Silvestre, cuja denominação resulta de ter sido assinado a 31 de Dezembro, dia de São Silvestre, de 2016, pelo partido do Presidente, a Maioria Presidencial, e a oposição, então liderada pela UDPS de Etienne Tshisekedi, com mediação dos bispos católicos, consubstancia a realização de eleições em 2017, mantendo-se Kabila no poder nesse espaço de tempo, mas estando obrigado a deixar o lugar imediatamente a seguir para o vencedor das eleições.

No entanto, através de diversas manobras e expedientes dilatórios, a MP e Joseph Kabila não cumpriram o acordo de São Silvestre e conseguiram adiar, mais uma vez, as eleições, para Dezembro de 2018, deixando, pelo meio, o Congo-Democrático mergulhado em violência, como foi disso exemplo claro a rebelião no Kasai Central, onde as denominadas milícias de Kamwina Nsapu provocaram milhares de mortos e milhões de refugiados, incluindo mais de 40 mil que procuraram refúgio em Angola, na Lunda Norte.

Isto, ao mesmo tempo que a capital, Kinshasa, e as principais cidades do país, estiveram por várias vezes mergulhadas em violência, primeiro no decurso de manifestações organizadas pela oposição para exigir eleições e o cumprimento dos acordos de São Silvestre, e depois pela Igreja Católica, resultando destas várias centenas de mortos às mãos das forças de segurança.

A par desta galopante instabilidade, tanto a oposição partidária como alguns nomes presidenciáveis, como o antigo governador do Katanga e empresário de sucesso, Moise Katumbi, ou o empresário Sindika Dokolo, saíram a público a denunciar as atrocidades cometidas por Kabila para se manter no poder.

A comunidade internacional deu início a um período de forte pressão sobre Kinshasa para que as eleições fossem marcadas e realizadas. Em Angola, José Eduardo dos Santos, um dos mais antigos alicerces do poder de Kabila em Kinshasa, deixa o poder e, no seu lugar, João Lourenço, apesar de com cuidados evidentes devido à importância e potencial desestabilizador do gigante Congo, ensaia e concretiza uma mudança na forma como Luanda lida com o problema chamado RD Congo.

Lourenço e Kagame, o primeiro enquanto Presidente de Angola, o mais importante vizinho da RDC e líder do Órgão de Cooperação Política, Defesa e Segurança (OCPDS) da SADC, o outro, enquanto Presidente do Ruanda, país com o mais pesado historial de conflitualidade com a RDC e actual líder da União Africana, deram início a uma série de conversas e encontros com a questão congolesa no centro da mesa.

A eles juntou-se o Presidente francês, uma das potências europeias com ais interesses na região e no Congo, tendo Emmanuel Macron proferido a frase que, aparentemente, mais incomodou Joseph Kabila: "A França apoia o plano de Angola e do Ruanda para a RDC".

Imediatamente, o Governo de Kinshasa chamou os embaixadores de Angola, Ruanda e França para pedir explicações.

Ao que se sabe, foi explicado que as conversas mantidas são, como o Presidente João Lourenço avançou ontem, em Paris, em torno da necessidade de cumprimento do acordo de São Silvestre, realizar eleições, aceitar o vencedor destas como próximo Chefe de Estado da RDC, e avançar para a estabilização do país, nomeadamente nas áreas de maior conflitualidade, como é o caso, por exemplo, dos Kivu, Norte e Sul, com fronteira com o Ruanda, Uganda e Burundi, onde algumas guerrilhas de origem externa, FDLR (Ruanda) e ADF (Uganda), e outras locais, como o famigerado M23, têm impedido essa mesma estabilização política e militar no Congo-Democrático.

Os estranhos cartazes com a cara de Kabila

Isto acontece quando, ao mesmo tempo que acusa, de forma encapotada, o Ruanda e Angola de estarem a agir de forma pouco ortodoxa, o Governo de Kabila deixa, mesmo não se sabendo quem os colocou, a sua cara tenha, nestes dias, aparecido em diversos locais de Kinshasa em cartazes com frases alusivas à sua candidatura presidencial.

Como pano de fundo a todo este processo de violência pré-eleitoral, que começou em 2015, com Kabila a ensaiar uma alteração constitucional para se poder recandidatar a um 3º mandato, está a própria Constituição congolesa que limita a dois os mandatos presidenciais consecutivos, o que torna os tais cartazes que apareceram nas ruas da capital como, no mínimo, um desafio à tudo e a todos.

Para já, Angola, como João Lourenço garantiu em Paris, não está a liderar ou a apoiar nenhuma conspiração contra o Presidente Kabila.

"As conversas havidas entre o Presidente Kagame e o Presidente João Lourenço não foram feitas às escondidas, têm sido feitas nas cimeiras em que nós nos encontramos e a única matéria que nós tratámos sobre a RDC não é nenhuma conspiração, antes pelo contrário, é a necessidade de levar a que o Presidente Kabila respeite os acordos de São Silvestre", clarificou João Lourenço.

E, como prova disso mesmo, é que, como relatam as agências internacionais, o Chefe de Estado angolano, na qualidade de presidente do OCPDS, vai receber nos próximos dias o seu homólogo congolês-democrático em Luanda.

Todo o cuidado é pouco

A RDC é, como é reconhecido de forma geral, um dos principais focos de tensão em África e aquele que tem maior potencial desestabilizador, como o próprio Kabila lembrou, em tom de ameaça, quando, no ano passado, num discurso ao Parlamento, afirmou que o Congo, devido à sua localização geográfica - faz fronteira com nove países, incluindo Angola -, os seus mais de 80 milhões de habitantes - há quem diga que são mais de 100 milhões -, as múltiplas milícias e guerrilhas, algumas estrangeiras - por causa dos valiosos e abastados recursos naturais que cobiçam -, "pode desestabilizar todo o o continente africano e o mundo", se não tiverem cuidado.

Isso mesmo deixou também claro João Lourenço, ainda em Paris, ontem, segunda-feira, quando afirmou que a RDC tem "quase 100 milhões de habitantes" e fronteiras no coração do continente com "nove países", o que é motivo mais que suficiente para que "nenhum governante pretende ver instabilidade na RDC pelas consequências que podem advir para toda aquela região".

"A RDC é um país com quase cem milhões de habitantes e que faz fronteira com pelo menos nove países africanos. Isso para dizer que nenhum de nós pretende ver instabilidade na RDC pelas consequências que podem advir para toda aquela região, para a região central de África, para a região dos Grandes Lagos e até mesmo para a região da SADC uma vez que a RDC é membro de pleno direito da SADC. Não se trata de alguém dizer `Presidente Kabila vá-se embora", aliás, ninguém tem o direito de o fazer, isto é um problema que só cabe ao povo congolês, sobretudo aos eleitores congoleses que nas urnas deverão expressar a sua vontade de elegerem o presidente que julgarem o mais preparado, o mais adequado para a nova etapa política que vem aí", disse Lourenço.

Em síntese, o que João Lourenço pretende com a sua participação na discussão em torno da RDC, na qualidade de "vizinho" e líder do OCPDS da SADC, é que a RDC realize eleições "que sejam aceites pela comunidade internacional", sublinhando que também outros lideres regionais, como o actual Presidente da SADC, o sul-africano Cyril Ramaphosa, ou Ali Bongo, líder da comunidade da África Central, ou Sassou Nguesso, Presidente do vizinho Congo-Brazzaville, apresentam as mesmas preocupações.

Mas, entende e lembra Lourenço, as questões internas da RDC dizem respeito "ao povo congolês" que "nas urnas deve expressar a sua vontade" e "eleger o Presidente que julgar mais preparado".

Mas avisou: "O poder político deve libertar os presos políticos, até para criar um bom ambiente para a realização das eleições; porque não se trata apenas de fazer eleições, é preciso que se faça eleições num bom ambiente político, de reconciliação com todos, com a sociedade civil, com a Igreja, e que essas eleições sejam aceites pela comunidade internacional porque fazer eleições por fazer até se pode fazer já amanhã mas se ninguém reconhecer, não se ganha absolutamente nada com isso!".

Macron dixit

Para o Presidente francês, a questão é igualmente simples: "Kabila não pode participar" nas eleições de Dezembro próximo porque é isso que prevê o acordo de São Silvestre, exigindo ainda "eleições livres e justas", garantindo o apoio de Paris às iniciativas em curso pelos países da região - Ruanda e Angola - para que isso seja conseguido.

"Temos - a França - as mesmas preocupações e apoiamos as iniciativas que venham a ser tomadas pelos países da região e pela União Africana, que passam por fazer aplicar os acordos e permitam uma clarificação da situação política. Sem qualquer complacência, com calma e clareza", esclareceu Emmanuel Macron.