É preciso pouco esforço para os encontrar um pouco por toda a "cidade do asfalto", numa Luanda que há muito se habituou a eles, com olhos semicerrados pela inalação dos gases da gasolina em garrafas de plástico sempre presentes.

Estão em todo o lado, com as suas roupas esfrangalhadas, mãos sujas, fome nos olhos e mão estendida, nos semáforos da Baixa, na Marginal, onde os "outros" buscam perder os quilos dos excessos em passo de corrida, ou junto aos restaurantes conhecidos da cidade...

Mas em todo o lado parecem invisíveis, para quem por eles passa, seja nos carros com mais cilindros que quase todos eles têm de anos de vida, ou para o Estado, que passa ao largo da resposta necessária ou vontade de lidar com um problema que expõe mais que a pobreza, mostra o alheamento da sociedade à miséria absoluta dentro de corpos franzinos e sem futuro.

Mesmo perante o desprezo a que são votados, embora haja sempre alguém que os ajude, como todos referem nas conversas que o Novo Jornal teve com várias crianças que têm a rua como sala de estar e quarto de dormir, a esperança está sempre presente nos olhos que falam sempre mais que a boca co que dizem sonhar com o dia em que serão acolhidos numa família ou num lar onde sejam bem tratados.

E não é sem fundamento que todos dizem que só querem um tecto e alguém que os trate como aquilo que são, crianças, porque não poucos estão na rua vindos de lares onde nunca se sentiram crianças perante o desconforto dos maus tratos, quantas vezes violência física.

David António, nome fictício, de 16 anos, corpo franzino, após a morte da mãe, há alguns anos, foi viver no Kilamba com o seu pai e a madrasta, mas a relação com esta não era boa e o rapaz decidiu sair de casa, preferindo morar na rua.

Depois foi inserido num centro de acolhimento situado no bairro Rocha Pinto, município da Maianga, mas acabou por fugir de lá também, alegando que era espancado brutalmente pelos responsáveis da instituição. Preferiu o regresso às ruas.

David procurou abrigo em casas desocupadas nos arredores da Baía de Luanda, onde encontrou várias outras crianças na mesma situação.

Mas, quase sempre, pouco tempo depois eram e são expulsas pela polícia, dormindo onde calha, seja sobre os bancos da Marginal de Luanda, nos jardins das redondezas, nos cantos mais escuros das ruas da Baixa, em vãos de escada...

Apesar das dificuldades, não escasseia engenho a estas crianças, que, quando não se deixam dominar pelo vício da inalação de gasolina, que lhes "atordoa o sofrimento", como relatam, encontram soluções para lidar com os desafios diários de quem não tem casa, família, protecção, onde sobra a fome, o frio e o desespero.

É o caso deste adolescente com quem o Novo Jornal falou por estes dias. David começou a pedir esmola, depois de ter juntando algum dinheiro, comprou material e passou de pedinte a engraxador é com o dinheiro que faz que compra a massa ou o arroz que, com alguns amigos, "hoje uns, amanhã outros", cozinha numa lata e come.

E nos dias piores, David normalmente fica em frente ao Shopping Fortaleza pedindo, comida e às vezes vai bater às portas de restaurantes nos arredores para saciar a sua fome, a sua e a dos amigos mais pequenos.

O Novo Jornal fez uma ronda pela avenida Deolinda Rodrigues, 1ª de Maio, Maculusso, ilha e Baía de Luanda e foi possível verificar de perto a situação deplorável em que vivem largas centenas de crianças, algumas tão novas que ainda deviam estar no sistema de ensino pré-escolar.

A pobreza e o desemprego como húmus desta tragédia social

Como o Novo Jornal verificou por estes dias em que esteve com vários meninos de rua em Luanda, a esmagadora maioria são rapazes, sendo poucas as meninas, ou porque aparecem menos ou porque estas são menos "enxotadas" pelas famílias.

"Meu pai já morreu e a minha mãe está viva e eu fugi da minha casa por causa da fome", disse Alberto, 14 anos, que admite voltar a casa sempre que tem algum dinheiro a mais com que pode ajudar a mãe e os seus irmãos mais pequenos.

O desemprego no seio das famílias angolanas também é apontado como causa para este crescente problema nas ruas da capital angolana.

Zezinho, de 11 anos, contou ao Novo Jornal que vive no Cazenga com os pais, que estão desempregados e, devido à fome, sai sempre que possível de casa até aos supermercados mais próximos no sentido de conseguir comida ou dinheiro para levar para casa.

Questionado se estuda, "o rapaz respondeu que não sabe ler e nem escrever", porque nunca frequentou uma escola.

Apesar de serem cada vez mais, os meninos de rua de Luanda podiam estar em centros de acolhimento, porque, como se verificou aquando da visita do Presidente dos EUA, Joe Biden, no final do ano passado, pelo menos durante esses dias deixaram de ser vistos porque foram acolhidos momentaneamente.

Durante três dias não houve movimentos de meninos nas ruas porque foram quase todos para centros de acolhimento ou, nalguns casos, nas esquadras da polícia, explica Adilson, de 12 anos, que viveu este episódio, ressaltando que após a visita, regressaram todos para as ruas.

"Só quero ter uma família ou viver num centro". Este é o grito de socorro de muitos rapazes que sonham com uma vida digna, onde possam se alimentar e estudar, pois grande parte destas crianças nunca frequentou uma escola.

"Quero conhecer um centro, para eu ficar lá", disse Adilson, que contou ainda que, de vez em quando, pessoas dessas instituições os procuram, dizem que vão tirá-los das ruas, mas isso ainda não aconteceu.

Apesar da falta de comunicação com as suas famílias biológicas, estas meninos em situação de vulnerabilidade criam laços fortes com os camaradas de infortúnio, protegendo-se uns aos outros, formando núcleos sólidos, como não existiam nas suas famílias de origem.

Mas essa memória do conforto familiar demora a desaparecer, porque, como sabe bem quem diariamente passa pelos locais onde mais se concentram estas crianças, destas não se ouvem apenas pedidos de moedas ou de comida, são igualmente comuns os pedidos de ajuda para encontrar uma família de acolhimento.

E ir à escola é um sonho permanente, uma ilusão que raramente se dilui na agrura dos dias, na fome das manhãs, nas noites mal dormidas, no medo da violência, no risco de serem violentados, quantas vezes na pior forma de violência, a sexual, nos nós da roupa suja e rasgada...

Uma das questões que uma abordagem séria a este problema poderia resolver, pelo menos em parte, é a questão da criminalidade, porque estas crianças crescem e com o crescimento chegam mais dificuldades e com estas a fragilidade para resistir aos apelos do crime como solução.

O Novo Jornal contactou a direcção do Instituto Nacional da Criança e esta indicou a área de acção social, família, igualdade e equidade do género do Governo Provincial de Luanda para falar do problema. Isso foi tentado, mas sem sucesso.

O Instituto Nacional da Criança de Angola estima que mais de 2.700 crianças vivem actualmente em situação de rua, de acordo com dados revelados no mês de Agosto deste ano.