Face a esta escassa ou nula evolução no terreno do que está contido no documento assinado na mini-Cimeira de Luanda de 23 de Novembro do ano passado, os Estados Unidos voltaram agora a fazer um veemente pedido ao Ruanda para acabar com o "apoio" ao M23, e à RDC para extinguir o apoio à guerrilha contrária ao regime ruandês, as FDLR (Forças Democráticas de Libertação do Ruanda), como o Governo de Kigali tem insistido que existe.

Na denominada mini-Cimeira de Luanda ficou estipulado, no documento assinado por todas as partes, que os rebeldes do M23 seriam sujeitos a um calendário concreto para retirarem das áreas tomadas de forma violenta no leste congolês.

Este encontro na capital angolana, a 23 de Novembro de 2022, contou com a presença dos Presidentes da RDC, Félix Tshisekedi, e do Burundi, Évariste Ndayishimiye, enquanto líder da Comunidade de Países do Leste africano (EAC), o ministro dos Negócios Estrangeiros do Ruanda, Vincent Biruta, além do anfitrião, João Lourenço, que lidera a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL).

Por detrás de todo este recrudescer da violência nas já de si massacradas províncias do leste congolês, Kivu Norte, Kivu Sul e Ituri, onde se desenrola em trágico contínuo, desde a década de 1990, uma tempestade de violência protagonizada por dezenas de grupos guerrilheiros, criados no húmus do genocídio de 1994 no Ruanda, está o apoio, assim o diz o Governo de Kinshasa, o apoio do Exército e dos serviços secretos ruandeses ao M23, com o objectivo de manter a região desestabilizada.

Desde finais de 2021 que se assiste a uma reorganização do Movimento 23 de Março, abreviado para M23, com moderno equipamento militar, com avanços sólidos na região, assumindo o controlo de dezenas de localidades de uma das mais ricas zonas do mundo em recursos minerais estratégicos - coltão, cobalto, terras raras, ouro, diamantes... -, tendo em meados de 2022 acontecido uma aceleração vertiginosa das acções destes rebeldes.

O M23, tal como outras guerrilhas, nasceu no seio da etnia Tutsi ruandesa, o alvo referencial do genocídio de 1994 perpetrado pela maioria Hutu, e hoje é acusado pelo Governo de Tshisekedi de estar a ser financiado e a contra com apoio logístico do Ruanda, embora não seja muito claro o porquê de tal apoio, que é refutado pelo Presidente ruandês, Paul Kagame, embora este se tenha comprometido com Tshisekedi e João Lourenço a usar a sua influência junto dos lideres da guerrilha para os conduzir a negociações.

Uma das teses mais sólidas para justificar o "apoio" de Kigali aos M23 na sua "conquista" de territórios no leste da RDC - os guerrilheiros dizem que se estão a defender das milícias de origem Hutu - é que, com a sua presença, as forças congolesas e as autoridades se mantêm afastadas da área onde, por isso, mais facilmente, são explorados os seus recursos naturais, nomeadamente o coltão, que os relatórios de organizações internacionais, apontam como facto que o Ruanda é hoje um exportador deste minério essencial na economia mundial, especialmente do universo das novas tecnologias, sem que tal exista no seu subsolo, pelo menos em quantidades comerciais.

Agora, quando a generalidade dos prazos definidos no acordo de Luanda, um roteiro com etapas bem salientes para cumprir por parte dos rebeldes, a EAC e o Governo de Kinshasa estão a, de novo, acusá-los de não estarem a sair das localidades como previsto, dando como exemplo as localidades de Rumangabo e Kishishe, mo território de Rutshuru, no Kivu Norte.

Segundo a rádio das Nações Unidas na RDC, que faz parte da MONUSCO, uma das mais pesadas missões da ONU em todo o mundo, a Radio Okapi, a EAC vai enviar oficiais para o terreno de forma a verificar o cumprimento dos acordos, nas próximas horas, podendo mesmo começar já nesta sexta-feira.

A EAC recorda que a área em questão já está a ser patrulhada pelo contingente que a EAC tem no local para impor o fim das hostilidades, contando com mais de 2.000 militares de países, entre outros, como o Quénia e o Uganda, cuja missão passa por vigiar o cumprimento das regras assumidas e ainda de intervir militarmente contra os rebeldes se tal se manifestar essencial para concluir o acordado.

Algumas fontes locais citadas pelos media congoleses dizem que a lentidão do processo de retirada é ma manobra táctica dos rebeldes do M23 que lhes permite, na verdade, manter as áreas que consideram essenciais, enquanto vão fazendo de conta que estão a cumprir o Acordo de Luanda.

Washington volta a tomar posição

Na quinta-feira, de acordo com a Radio Okapi, emissora da ONU na RDC, os Estados Unidos da América reiteraram esta quinta-feira, 05, o apelo ao Presidente ruandês, Pal Kagame, para cessar todo o apoio ao M23.

Em comunicado, o Departamento de Estado aproveita ainda para elogiar o trabalho dos especialistas da ONU onde se prova de forma inequívoca que o M23 está a ser apoiado há muito tempo por Kigali.

No documento lê-se ainda que Washington está claramente ao lado dos esforços regionais em curso para terminar com este conflito, nomeadamente o Acordo de Luanda e as decisões tomadas em Nairobi, no âmbito dos esforços da EAC e da CIRGL.

"Tendo tomado boa nota das provas claras do apoio ruandês aos rebeldes do M23 e de relatos credíveis de violações graves dos Direitos Humanos pelos guerrilheiros, reavivamos o nosso apelo ao Ruanda para que cesse todo e qualquer apoio ao M23 e retire as suas tropas do leste da RDC", aponta o documento emitido pelo Departamento de Estado citado pela Radio Okapi.

Os EUA fazem, no entanto, na linha do que tem acusado o Ruanda, um igual apelo para que a RDC deixe de apoiar os guerrilheiros da FDLR (Forças Democráticas de Libertação do Ruanda), antagonistas do regime de Paul Kagame, e que está igualmente plasmado no relatório da ONU que prova o apoio de Kagame ao M23.

Estes apelos são justificados com o receio dos EUA sobre uma possível e perigosa escalada da violência na Região dos Grandes Lagos, que tem potencial para desestabilizar quase toda a África Central e de Leste, além de outras consequências nefastas-

E agora?

Uma das esperanças de que este Acordo de Luanda assinado a 23 de Novembro não se transforme em mais um fracasso a juntar às dezenas de fracassos que o antecederam, é o facto de o Presidente do Ruanda, Paul Kagame, uma das figuras centrais deste conflito se ter comprometido com o mediador da comunidade de Países da África do Leste (EAC), o antigo Presidente queniano Uhuru Kenyatta, a exercer pressão e influência sobre os guerrilheiros do M23 para pararem com a sua actividade sanguinária no leste congolês, naquilo que está a ser visto como um dos passos mais decisivos na longa caminhada para a paz na região dos Grandes Lagos.

Isso, porque a situação nesta região dos Grandes Lagos é encarada pela generalidade dos analistas como insustentável por muito mais tempo sob o risco de evoluir para uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda que, inevitavelmente, levaria ao envolvimento dos países vizinhos, incluindo Angola, de um ou do outro lado da barricada.

Com a reactivação do M23, a violência, que já era vigorosa no leste congolês, palco da actividade de vários grupos de milícias e guerrilhas com origem nos países vizinhos, como os ugandeses da ADF ou os ruandeses da FDLR, ganhou uma dimensão sanguinária, com centenas de mortos, milhares de desalojados e esporádicos confrontos entre os Exércitos do Ruanda e da RDC, porque Kinshasa acusa desde o primeiro minuto KIgali de estar por detrás do ressurgimento desta organização de guerrilha terrorista.

Com uma vaga crescente de sinais claros de que estava iminente uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, que trocaram várias acusações sobre quem deu início às hostilidades, vários actores internacionais entraram em cena logo em meados de 2021 para evitar a faísca que pode incendiar um barril de pólvora, como é a Região dos Grandes Lagos.

E um desses protagonistas foi o Presidente angolano, na qualidade de líder da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL) e, também, na condição de "Campeão para a paz e reconciliação em África", uma "patente" atribuída pela União Africa, organização pela qual é ainda mediador neste processo, à qual João Lourenço tem procurado corresponder liderando uma parte das tentativas de acalmar os ânimos na região.

Isso mesmo ficou evidente com as Cimeiras que, em 2022, trouxeram a Luanda os Presidentes congolês, Félix Tshisekedi, e ruandês, Paul Kagame, ou os seus ministros dos Negócios Estrangeiros, o que permitiu impedir que, pelo menos, o rastilho que leva a chama ao paiol da pólvora arda com menor intensidade e mais lentamente.

Passo de gigante?

Para acabar com esta tensão crescente e perigosa nos Grandes Lagos, há uma certeza que os analistas congoleses têm, e para a perceber basta ler a imprensa da RDC por estes dias, que é a convicção de que o M23 não pode ter saído de um longo adormecimento - de anos - sem o apoio de uma força poderosa externa, e o dedo foi imediatamente apontado ao Ruanda, país de origem do grupo, e que é essencial cortar esse apoio de retaguarda.

Com o Governo de Félix Tshisekedi a acusar, há meses, o Ruanda de estar a apoiar o M23, com momentos de forte tensão, nomeadamente quando em Julho de 2022 Kinshasa fechou o seu espaço aéreo à RwandAir, a companhia nacional ruandesa de aviação, e escaramuças de fronteira violentas, mas esporádicas, entre os dois Exércitos, e com Paul Kagame e o seu Governo a recusar quaisquer responsabilidades e apoio aos guerrilheiros, este contexto tinha, e tem, tudo para resvalar para um conflito aberto entre os dois vizinhos.

No entanto, ao fim de longos meses de dissuasão diplomática e pressão política, o líder ruandês, Paul Kagame, comprometeu-se com o mediador da EAC, Uhuru Kenyatta, a pressionar o M23 a parar com as agressões, tendo, na sexta-feira, o antigo Presidente queniano, na qualidade de mediador dos países do leste africano para o Processo de Paz de Nairobi para a RDC, garantido que tal pode ser o princípio para chegar a um fim sólido para esta crise.

Esta declaração inesperada, até porque Kagame admite perante o mediador queniano, que tem, afinal, capacidade de influenciar o M23,foi divulgada em comunicado, depois de Kenyatta ter estado em Kigali e em Kinshasa para reduzir a tensão e abrir caminho à paz como substancial as negociação decorridas em Nairobi e Luanda, até porque tanto a CIRGL como a EAC têm feito questão de admitir que ambos os processos e esforços são complementares e não antagónicos, para levar a paz ao leste congolês.

Este processo de pacificação é considerado como urgente por todas as partes, até porque na RDC cresce na sociedade uma vaga de fundo que exige uma acção robusta das Forças Armadas do país (FARDC) contra o Ruanda, porque a recusa de aceitar as acusações de que está a apoiar o M23 não convence, e o risco cresce a cada dia que passa sem ser anunciada uma solução.

A faísca congolesa

É um facto que está a crescer na sociedade congolesa uma exigência cada vez maior de ajuste de contas com o Ruanda, o que pode ser percebido de forma clara olhando para os milhares de jovens congoleses que responderam ao apelo patriótico do Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, feito no dia 05 de Novembro, para que se juntem às forças de segurança no combate armado aos guerrilheiros do M23.

Para o Governo do Presidente Félix Tshisekedi não havia então grandes dúvidas de que o Ruanda está por detrás do apoio logístico e financeiro dos guerrilheiros do Movimento 23 de Março que voltaram a atormentar o leste da RDC nos últimos meses.

Depois de acusações graves trocadas entre Kinshasa e Kigali desde meados de 2021, embora este seja um conflito de baixa intensidade que se prolonga desde a década de 1990, sobre violações territoriais de uma e outra parte - o Ruanda tem fronteira com a RDC nas províncias do Kivu Norte e Kivu Sul - e da ocorrência de escaramuças fronteiriças ocasionais entre militares dos dois países, o surgimento do M23, um grupo de guerrilha que estava adormecido desde há quase uma década, levou o Governo congolês a agir acusando o Governo ruandês de estar por detrás da sua acção violenta no leste do país.

Esta mobilização geral, com manifestações de apoio em todas as grandes cidades da RDC, onde largos milhares de congoleses exigem acção ao Governo de Kinshasa directamente contra o Ruanda, que consideram o verdadeiro agressor, fazendo dos guerrilheiros do M23 a ferramenta da agressão, é uma escalada séria nesta disputa de argumentos entre Kinshasa e Kigali que pode, mais cedo ou mais tarde, empurrar os Grandes Lagos para a condição de palco de um conflito aberto que pode ter consequências devastadoras para toda a África Central.

As razões de fundo para este conflito

O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.

E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.

Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.

A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.

Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, hiperpovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.

É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.

Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.

Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC