O rápido avanço das forças russas em direcção à cidade de Kharkiv, a segunda maior da Ucrânia, com mais de 1,5 milhões de habitantes, com mais de 250 kms2 e dezenas de localidades subtraídas ao controlo de Kiev em menos de 48 horas, está a gerar enorme discussão entre analistas e estrategas militares.

Como é que foi possível os russos avançarem tão depressa quando há mais de dois meses se falava na grande concentração de forças russas na fronteira com a Ucrânia a norte de Kharkiv e até o Presidente Vladimir Putin, em Março, avisou que iriam abrir uma zona tampão com milhares de kms2 naquela geografia específica?

Os ucranianos tiveram tempo mais que suficiente para deslocar unidades para a zona por onde iriam entrar os russos, erguendo linhas defensivas que impedissem pelo menos a facilidade com que os russos estão agora a galgar terreno em direcção à grande cidade do nordeste ucraniano. Mas não o fizeram.

Foi desleixo, falta de meios humanos e armamento ou Kiev caiu na armadilha montada pelos estrategas russos? Para já, uma resposta cabal ainda não é possível, mas há indícios de que os russos armaram uma cilada para fazer os ucranianos acreditar que a ameaça de avanço em Kharkiv era falsa.

Falsa e que pretendia apenas fazer com que o comando militar ucraniano retirasse forças do leste e do sul, desguarnecendo estes pontos quentes da frente de guerra, para que as unidades russas ali posicionadas pudessem ocupar, finalmente, o território que falta na região de Donetsk e Kherson.

Ora, se esta tese vingar com dados retirados da realidade do terreno, o que só será possível nos próximos dias, então, o CEMGFA ucraniano, general Oleksandr Syrskyi, e os seus comandantes, acreditaram que a ameaça de entrada dos russos por Kharkiv era um mero engodo para conseguirem vantagens a sul e a leste.

Ora, é aqui que entram as possibilidades de se tratar de genialidade estratégica dos russos ou mera sorte que resolveram, naturalmente, aproveitar, ao verem que, apesar de terem apenas 55 mil homens na zona, que todos os analistas consideravam escassos para uma invasão pelo norte, isso seria suficiente para uma investida com sucesso porque os ucranianos não reforçaram como era esperado as suas posições defensivas.

Apesar de 55 mil homens ser efectivamente pouco em condições normais, ou seja, como a Ucrânia a reforçar as suas defesas no norte de Kharkiv, sem esse reforço os comandantes russos concluíram que poderiam ser suficientes face à escassa solidez defensiva ucraniana que enfrentariam caso avançassem.

E foi isso que fizeram, não se sabendo, para já, se foi sorte ou génio, conseguindo não apenas alargar o mapa da ocupação russa na Ucrânia como ainda estão a conseguir desguarnecer as linhas ucranianas a leste e a sul de onde o general Oleksandr Syrskyi está a mandar retirar brigadas à pressa para irem socorrer as linhas de Kharkiv por onde os russos avançam com estranha facilidade há mais de 72 horas.

Blinken, o tapa-buracos

O que deixará, mais cedo ou mais tarde, buracos da estrutura defensiva ucraniana em Kherson e em Donetsk, e ainda em Zaporizhia, as três das quatro províncias anexadas por Moscovo em 2022 que ainda não estão totalmente ocupadas, podendo isso revelar-se igualmente desastroso para Kiev.

Isto, porque se aos ucranianos falta, como o próprio Presidente Zelensky admite, mão-de-obra para guarnecer as trincheiras devido ao estrondoso insucesso do seu programa de mobilização, os russos têm centenas de milhar em reservas que podem deslocar rapidamente para as diversas frentes de guerra.

Mas não é apenas na linha da frente que a Ucrânia esbraceja sem conseguir resolver os seus problemas essenciais, também nos corredores do poder em Kiev estão a surgir indícios de forte sobressalto, com brechas na orgânica do poder de Volodymyr Zelensky.

E o mais sonoro desses indícios são as acusações trocadas entre o CEMGFA Oleksandr Syrskyi e o chefe da temida secreta militar (GUR), general Kirylo Budanov, sobre responsabilidades no fracasso defensivo ucraniano em Kharkiv, o que, além de perigoso para a solidez do poder de Zelensky, mostra ao inimigo, e aos aliados ocidentais, principalmente, que o "castelo" está a colapsar.

Mas essa luta pela responsabilização do fracasso em Kharkiv mostra ainda que pode mesmo ter existido um engodo criado pelos russos e que foi engolido pelos ucranianos, porque só isso explica que o general Syrskyi acuse o chefe da secreta militar por esse mesmo fracasso, sabendo-se como se sabe que é à intelligentsia militar que cabe desatar esses nós cegos.

Perante a fragilização do poder de Zelensky, não apenas por esta nova circunstância na linha da frente, mas ainda porque a sua legitimidade política está a ser cada vez mais discutida, inclusive nos canais de YouTube e nas redes sociais pró-ucranianos porque o seu mandato termina a 20 de Maio, na próxima segunda-feira.

As eleições não foram realizadas porque o país está sob a Lei Marcial devido à guerra, o que justifica o contexto, mas isso não impede de os pontas de lança pró-russos na corrente da internet estejam a procurar por em causa a sua legitimidade.

Mas isso não é o único buraco possível, também pode criar constrangimentos entre os seus aliados ocidentais, alguns deles com limitações constitucionais no fornecimento de apoio financeiro e militar a regimes parcial ou totalmente inconstitucionais.

E a chegada esta terça-feira, 14, a Kiev, do secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, é claramente a resposta de Washington às preces de Volodymyr Zelensky, que nas suas regulares aparições em vídeo, não tem apenas admitido sérias dificuldades na linha da frente como tem sido muito crítico da escassa e tardia ajuda dos seus amigos ocidentais.

Isto, a ponto de, como nunca tinha acontecido, aquele que é, sem dúvida, o mais pró-ucraniano media ocidental, a CNN, estar a destacar um relato dramático do seu jornalista no terreno, que se tem destacado como ponta de lança na defesa dos interesses de Kiev, NIck Paton Walsh, onde este fala em "pesadelo para Kiev".

Walsh diz mesmo que em Kharkiv está a decorrer o avanço mais rápido dos russos desde que a invasão russa teve lugar em Fevereiro de 2022, nesta fase da guerra mais intensa que já vem de 2014, porque, entre as mais importantes razões, destaca o facto de terem falhado inacreditavelmente na fortificação das suas linhas defensivas.

Com este avanço russo, como a CNN também admite, a pressão russa, que já era intensa e estava a desbaratar a capacidade ucraniana de resistir, fica agora ainda mais difícil ao alargar por mais algumas centenas de quilómetros a linha da frente já demasiado saturada para a capacidade de resistência de Kiev.

E a situação pode piorar rapidamente porque são cada vez mais insistentes os relatos de uma nova frente aberta pelos russos na região de Sumi, a norte de Kahrkiv, como o próprio chefe da secreta militar ucraniana, general Budanov, confirmou nas últimas horas.

A chegada de Blinken a Kiev pode, no enanto, ser um relativo alívio na pressão política sobre Zelensky mas dificilmente aliviará a pressão sobre a frente de guerra, porque as armas americanas do pacote de ajuda aprovado no Congresso há três semanas, como a maioria dos analista sustenta, dificilmente farão a diferença.

Mas foram essas as primeiras palavras do chefe da diplomacia norte-americana ao aterrar na capital ucraniana, referindo que "mais armas estão a chegar" e que algumas que fazem parte do pacote de 61 mil milhões USD, dos quais apenas menos de 14 mil milhões são efectivas compras de equipamento, já estão no terreno "a fazer a diferença".

Diferença essa que, pelo menos para já, só Blinken vê, porque nem o próprio Presidente Volodymyr Zelensky consegue enxerga-la, tendo mesmo disto, no encontro com o americano, que, de imediato, precisa de dois sistemas de defesa antiaérea Patriot (mais de 1.3 mil milhões USD por unidade), para levar algum alívio à região de Kharkiv.

Boas notícias para o mundo...

Apesar de ainda ser cedo para aferir da concretização de tal cenário, já há, apesar de ainda fora dos media "mainstream" quem defenda que a grande meta, agora, a alcançar pelos russos com este avanço em Kharkiv, mesmo que o plano inicial não fosse esse, é conseguir território suficiente que fala com que em Kiev se veja como razoável negociar em termos menos rígidos uma saída para este conflito que já se arrasta vai para três anos e está a arrastar a economia europeia para um buraco sem fundo.

E isso pode ser mais fácil do que parece, não porque se deseje que assim seja em Kiev, mas por falta de alternativa, porque como o próprio homem da CNN na Ucrânia refere, Zelensky terá, em última análise, que fazer "escolhas muito feias" sobre "quem e o que é que vai sacrificar" ao longo da linha da frente de mais 1200 kms para socorrer Kharkiv.

Mas não apenas devido a essa clara vantagem de Moscovo na guerra... é que o Presidente russo, Vladimir Putin, vai esta semana, quinta e sexta-feira, a Pequim, para uma muito relevante visita à China, a convite do seu homólogo Xi Jinping.

Depois de ter estado na Europa, especialmente na França, e depois de ter recebido em Pequim os lideres alemão, Olaf Scholz, o próprio Blinken, entre outros, sendo que todos forçaram as linhas vermelhas chinesas de não aceitação de pressão sobre a sua parceria estratégica coma Federação Russa.

E para pedir a Xi JInping que deixe de ajudar a Rússia, claramente sob ameaça de sanções, como foi o caso do norte-americano, mas também do francês Macron, o que pode infligir danos à economia chinesa, sendo possível que o líder chinês converse com o seu amigo russo sobre uma hipotética nova abordagem para uma saída negociada do conflito na Ucrânia.

E também porque se repetem os escândalos na Rússia ligados à corrupção na área da Defesa, porque, depois de há três semanas, ter sido detido o vice-ministro da Defesa por corrupção, agora foi a vez do chefe do departamento de pessoal, general Yury Kuznetsov, ser detido por subornos de grande valor recebidos para beneficiar interesses em negócios no sector.