Desde o nascimento deste país até aos dias de hoje, o partido que há quase meio século (des) governa Angola, quando se vê politicamente embaraçado ou confrontado com vagas de descontentamento popular, ainda que surdas, recorre ao esfarrapado argumento dos inimigos internos e externos, como se esses fossem os responsáveis por todos os males e crises sociais que acontecem entre nós.
É nesse contexto que se criou e cimentou a chamada "cultura do inimigo", sendo alguns deles reais e outros imaginários. Para o poder, tanto uns como outros estariam todos apostados em desestabilizar a revolução angolana e derrubar o "governo legítimo de Angola".
A enraizada "cultura do inimigo" não se restringia aos que se opunham ao poder por via da resistência armada, mas também estendia-se aos críticos e a todos que usavam os meios pacíficos para emitir as suas opiniões ou opor-se às políticas defendidas pelo partido/Estado que, durante o período monolítico, dizia ser a força dirigente da Nação e "único e legítimo representante do povo", mesmo sem ter o poder legitimado nas urnas, ou seja, submetido ao "crivo" do voto popular.
No jargão da época, os críticos e os demais entes que pensavam diferente eram rotulados de "agentes da reacção interna a soldo imperialismo internacional, com os EUA à testa".
Por ironia da história, à luz dos últimos acontecimentos registados no país que envolveram dois cidadãos russos e os seus "agentes" angolanos, assim como das inflexões políticas de Luanda na sua aproximação a Washington, a Federação Russa arrisca-se a ser o novo epicentro da contra-revolução angolana.
Um dos primeiros sinais de atribuição culpas aos outros ocorreu nos primeiros anos que se seguiram a independência nacional, quando, em 1977, o MPLA fez aproveitamento político da tentativa de golpe de Estado que viria a servir de pretexto para justificar a gritante incapacidade do governo no fornecimento de bens de primeira necessidade às populações.
Naquela altura, a economia estava concentrada nas mãos do Estado, que detinha o monopólio do comércio, os abastecimentos eram feitos por via de cartões, e com enormes filas à porta das chamadas "lojas do povo". Dezenas, senão mesmo centenas de populares madrugavam à porta dessas lojas ou "marcavam" os seus lugares com pedras e tijolos, em função da ordem de precedência.
As "lojas do povo" eram espaços comerciais que ofereciam poucos víveres, de forma racionada, e que se esgotavam rapidamente dada a enorme procura.
A estratificação social feita à época dividia os angolanos em classes: a grande maioria da população acotovelava-se à porta das "lojas do povo", que tinham as prateleiras quase sempre vazias ou indumentadas de pó, ao contrário das "lojas dos dirigentes", que serviam para prover as necessidades dos membros do restrito e selectivo aparelho partidário e governativo.
Foi na ressaca dos acontecimentos do "27 Maio" que o MPLA aproveitou a ocasião para acusar os golpistas de serem os responsáveis pela falta de alimentos nas "lojas do povo", alegando que eles os retinham em armazéns, evitando que os mesmos chegassem aos consumidores finais.
Feita a purga ao fraccionismo, não demorou muito tempo para que a verdade viesse ao de cima, já que os problemas continuavam os mesmos ou, no pior dos cenários, agravados.
Durante as quase três décadas do conflito armado, o MPLA atribui grande parte das culpas dos seus fracassos à guerra. A falta de água nos chafarizes, de luz nas casas e vias públicas, de saneamento básico, a carência de alimentos e medicamentos eram, invariavelmente, atribuídos a UNITA, sua eterna rival.
Se ao antigo movimento de guerrilha liderado por Jonas Savimbi deveriam ser-lhe atribuídas as culpas pela destruição de bens públicos, com reflexos negativos na qualidade de vida dos angolanos, ao MPLA cabia-lhes assumir as suas responsabilidades pela má governação, a distribuição assimétrica da riqueza social e a corrupção endémica que gangrenou todo o tecido económico e social do país.
Vinte anos depois do alcance definitivo da paz, o partido governante, quando confrontado com os passivos da sua má governação ou a deficiente oferta de bens e serviços, não se coíbe de lançar mão ao passado da guerra, atirando as culpas ao partido do Galo Negro. Os conturbados debates no Parlamento entre os deputados das principais bancadas têm sido uma prova disso, de regresso às tristes memórias do passado, como se a guerra e as destruições tivessem sido feitas apenas por um dos contendores.
No actual contexto, o partido/Estado, que vive uma das suas piores crises internas de que tem memória, quando acossado com as manifestações de protesto devido às políticas impopulares implantadas, não tem tido a menor preguiça em atribuir as culpas ao maior partido da oposição, assim como às redes sociais.
A tese de uma conspiração anti-governamental alimentada por "agentes da reacção interna, a soldo dos interesses estrangeiros", assim as redes sociais voltou a ganhar uma certa consistência depois dos recentes tumultos que sacudiram o país, mormente Luanda, e que causaram quase meia de centenas de mortos, vários feridos e destruições de bens públicos e privados.
Na óptica do poder, existirão «grupos de pressão», sobretudo o chamado Partido da Culpa de Tudo - a UNITA- e as redes socais que terão instigado a população para que esta se revoltasse contra a governação de João Lourenço.
Mais do que de uma fuga para frente, estamos diante de uma forma subtil de o partido/Estado passar um "certificado de menoridade" ao povo, como se este fosse incapaz de pensar pela própria cabeça diante da crescente degradação das suas condições de vida.
Para os detentores do poder, é como que os jovens, que constituem a maior parte da população, não tivessem consciência dos seus problemas reais, mais concretamente a falta de empregos, oportunidades, de alimentos e habitações.
João Lourenço, em vez de identificar as verdadeiras causas que têm estado por detrás das vagas de descontentamento, optou por direccionou as suas baterias contra os chamados " inimigos da Revolução" que, na sua óptica, terão feito a cabeça do povo, como se este fosse um rebanho de ovelhas acéfalas, sem capacidade para exprimir os seus sentimentos.
Qualquer cidadão, mesmo sem nenhuma formação académica ou acesso às redes sociais, está plenamente consciente da subida vertiginosa do custo de vida, do desemprego, da fome e miséria que, convenhamos, são os "combustíveis" que alimentam a criminalidade e as revoltas sociais em qualquer parte do mundo.
Neste cenário de crise, o país precisa de alguém com autoridade moral para serenar os espíritos e transmitir uma mensagem de esperança ao povo e não "fabricar" inimigos, atiçando o ódio contra os opositores políticos, activistas e as redes sociais.
O país precisa também de pontes de diálogo entre governantes e governados, assim como de uma gestão parcimoniosa dos recursos financeiros e de fiscalização dos distintos poderes públicos.