O poder político em Angola tem uma relação complexa com a gestão do equilíbrio entre tradição e modernidade. Desde o consulado de José Eduardo dos Santos, o desejo de modernização acelerada do País conflitua com a prática reiterada de abandono e de exclusão da maioria da população, desde logo pelo modo como coarcta a cidadania e o seu exercício. Esta restrição é traduzida pelo número exorbitante de cidadãos sem bilhete de identidade e de crianças fora do sistema de ensino, pelos níveis de desemprego, de emprego ou actividade informal e de pobreza chocante.
O Presidente João Lourenço assumiu, aparentemente, uma aposta declarada na juventude para conduzir os destinos do País. Poderia ser uma aposta certa se tivesse tido outros critérios para além da idade. O número de nomeações para cargos de responsabilidade, tanto no aparelho do Estado, como no do MPLA, consideradas "flops" é simplesmente preocupante. Por inexperiência, por inépcia, ou por uma problemática relação com dinheiro e com bens materiais, apesar de não se esquecerem de dar graças a Deus pelas suas nomeações. Digo aparentemente, porque a realidade, traduzida no modo como foram afastados e ostracizados quadros de enorme valia, permite pensar que o desejo de liderar sem contrapoderes incómodos, associado à pretensa tentativa de promover um equilíbrio de género - tentativa essa que resultou na criação de mais "flops" - foram as principais motivações.
Tenho defendido que um dos grandes erros na construção do Estado em Angola se consubstancia na total despreocupação com a necessidade de africanização de algumas instituições, de modo a que certas práticas possam ser incorporadas na governação. Tal é o caso do onjango, que, para além de permitir maior participação de sujeitos com experiência de vida, pode funcionar como verdadeiro contrapoder. Com isso, as perniciosas práticas do "centralismo democrático" e de endeusamento das lideranças seriam eliminadas ou, pelo menos, atenuadas.
Em entrevista recente ao Novo Jornal, Isaías Samakuva, ex-Presidente da UNITA, revelou que, num encontro com mais-velhos no Cubal, província de Benguela, ouviu deles uma frase de grande significado: em Angola tudo o que se faz é ovinjembe. Isto é, é brincadeira, não se pode levar a sério. Será que jovens doutores que suportam o poder do Presidente João Lourenço conseguem perceber o alcance de tal frase?
Vejamos o que se passa com a paz, a maior conquista dos angolanos depois da Independência. Possivelmente, estamos a atravessar o mais longo período com ausência de guerra, no território, desde que Angola, como unidade territorial, existe. E o que se faz para preservar a paz? Para além de não se fazer o mínimo para aliviar a pobreza e a vida muito pouco digna que aflige a maioria dos angolanos, procurando dar atenção às palavras do Papa Paulo VI, quando referia, na década de 1960, que o novo nome da paz é desenvolvimento, o Executivo trata da reconciliação nacional como ovinjembe. É o que se pode extrair das práticas reiteradas de exclusão política, económica, social e institucional, não apenas dos antigos opositores armados, desrespeitando a palavra dada e os compromissos dos sucessivos acordos assinados, mas de toda a sociedade que não reza pela cartilha do partido no poder. É só ver os nomes dos empresários de sucesso que têm acesso privilegiado aos benefícios financeiros e de outro tipo; os afortunados que merecem a exclusividade dos favores da linha editorial dos órgãos de comunicação social públicos, com largo destaque para a TPA; as crianças que, no Dombe Grande, são entregues, pela miséria dos pais, para satisfação sexual de estrangeiros, ganhando um filho de esquebra; os milhões de desocupados de todas as idades que vagueiam pelas ruas, com olhar baço, perante a total ausência de esperança numa vida com o mínimo de dignidade; enfim, o desrespeito pela Constituição que todos juraram cumprir e fazer cumprir. Como se fosse pouco, a "inacebível" actuação da CIVICOP, que, esquecido o mandato inicial, refaz velhas perseguições e atiça ódios antigos que a Nação quer esquecer. O que pensarão da reconciliação nacional os descendentes das famílias representativas das elites do Planalto Central, elas que eram produto de uma mobilidade social fruto das oportunidades proporcionadas pelas igrejas cristãs e pelo CFB, elas que abandonaram as cidades onde poderiam ter tido uma vida condizente com as suas experiências e saberes em busca de um ideal que tinham o direito de ter, independentemente dos jogos da guerra fria? Não são tais descendentes a matéria-prima com que se fabrica o êxodo de quadros, que para certos governantes, ignorantes do que foi e é Angola, não fazem falta ou nem sequer são quadros?
Ovinjembe, pois, é tudo ovinjembe. São as promessas de tudo e mais alguma coisa, expressas no tempo do verbo, o futuro, mais utilizado pela ressonância da comunicação social pública, desde o milhão de casas, os Planos Directores, a água para todos, o fim dos cortes de energia, a erradicação da malária, a eliminação do lixo, os fóruns empresariais para captação de investimento estrangeiro, a melhoria do ambiente de negócios, a reforma da justiça, o diálogo com a juventude, a reabilitação das estradas e dos caminhos de ferro, a diversificação da economia, a auto suficiência alimentar. Tudo é ovinjembe.
Os recentes acontecimentos mostram que a desorientação do poder político, que vem de trás, é preciso sempre não esquecer, tem vindo a crescer. Os grandes problemas não são resolvidos e criam-se novos, como um fantasioso golpe de Estado de que se ouve falar apenas por pretensa ligação de líderes da UNITA. Algo que, a ter alguma credibilidade, implicaria de imediato que o Presidente recusasse o pedido de audiência de Adalberto Costa Júnior. A credibilidade da justiça fica uma vez mais afectada. Como afectada fica com o episódio da providência cautelar movida a propósito da organização de um debate sobre o pacote legislativo eleitoral promovido pela Ordem dos Advogados de Angola, que suscitou o apoio de praticamente todas as organizações da sociedade civil não enfeudadas ao MPLA, incluindo todos os bastonários anteriores dessa Ordem. Como fica ainda com a passividade em torno das acusações feitas pelo próprio Presidente da República, em plena Assembleia Nacional, de que naquela sala havia implicados no tráfico de combustível para países vizinhos. Assim, fica como?
Quando será que o MPLA assume o acto patriótico de reconhecer a sua incapacidade de resolver, por si só, os graves problemas do País, e desencadear um processo verdadeiro de reconciliação e despartidarização do Estado e da sociedade?