Há três anos que as chuvas teimam em manter-se longe da Cidade do Cabo, a mais conhecida cidade sul-africana, com cerca de 3,7 milhões de habitantes, e um dos locais que atraem mais turistas ao país, a ponto de a situação já ser considerada dramática e a presidente da autarquia que gere a urbe se desdobrar em apelos diários para a população poupar água.

Patricia de Lille aumentou mais uns degraus na escala do drama que esta cidade vive ao fazer avançar a data prevista para a última gota de água sair da última torneira da cidade, o já chamado "dia zero", de 21 de Abril para 12 desse mesmo mês, tendo em conta a diminuição da água registada hora a hora nas últimas represas que abastecem Cape Town.

A "mayor" da Cidade do Cabo mostrou-se mesmo, segundo relatos da imprensa local, indignada pelo facto de a situação ser dramática mas uma parte da população não mostrar estar "minimamente preocupada" pela forma como continua a gastar água.

Para evitar esses "abusos", a municipalidade criou mesmo uma página online para que os vizinhos mais responsáveis possam denunciar aqueles que mostram não ter um comportamento cívico adequado nestas circunstâncias pela forma como desbaratam a pouca água que resta à comunidade.

Em algumas áreas da cidade a água já não sai das torneiras, excepto por escassas horas, cada vez menos, por dia, o que é já um sinal evidente de que Cape Town pode vir a fazer história ao ser a primeira grande cidade em todo o mundo a ficar literalmente sem água.

Para preparar esse cenário, a administração da cidade já definiu um plano de emergência onde consta a possibilidade de criar duas centenas de pontos de abastecimento por cisternas oriundas de outras regiões da África do Sul onde cada família terá direito a um recipiente de 25 litros por dia, esperando-se que possam existir filas com centenas de pessoas à espera do seu quinhão de água.

Os turistas que chegam à cidade diariamente às centenas são sensibilizados para pouparem o mais possível a água e é-lhes dada a indicação de que só devem tomar um duche diário de dois minutos com água a correr.

Para já, nos bares e restaurantes estão a surgir novos métodos de uso da água nas casas de banho, sendo as descargas nas sanitas disponibilizadas em recipientes e não via autoclismo, entre outras formas de poupar.

Gangues aproveitam situação para ganhar dinheiro

Quando a câmara municipal se prepara, amanhã, sexta-feira, para votar uma postura que aumenta o preço da água de forma significativa e aponta para bónus monetários aos consumidores que usarem menos água, eis que a imprensa local começa a relatar situações em que gangues organizados ocupam com violência espaços onde ainda existem nascentes naturais utilizadas pelas populações para negociarem a venda de bidons de 25 litros.

Mas não só, algumas pessoas já começaram a armazenar grandes quantidades de água em casa ou em armazéns para posterior revenda, ou em depósitos de grande dimensão que chegam de outras regiões, que é vendida rapidamente por preços muito superiores ao normal, ou fica armazenada a "render juros".

Uma nascente localizada na zona de Newland, normalmente usada por uma cervejeira, foi ocupada pela população, primeiro, e depois por gangues, que, ao controlarem o acesso, estão, com isso, a ganhar quantidades consideráveis de dinheiro.

Especialmente na organização da venda de bidons de 25 litros que deixam o local às centenas em veículos de carga para serem vendidos nas áreas da cidades que já estão com torneiras quase secas.

Os jornais sul-africanos apontam mesmo o recipiente típico de 25 litros como uma espécie de moeda forte que está a ser armazenada para ser usada nas próximas semanas, onde o preço poderá passar a ser aquilo que quem vende pedir por falta de alternativa.

Problema abrange toda a África Austral, Angola não foge à regra

Este problema da seca é uma realidade em toda a África Austral e Cape Town não é o pior caso na África do Sul, é apenas a maior e mais conhecida cidade a ser afectada.

Por exemplo, em Angola, no sul do país, já há registo de fome em algumas áreas da província de Benguela e do Cunene, e milhares de animais estão a morrer por falta de água e pasto, estimando as agências das Nações Unidas que mais de um milhão de pessoas esteja actualmente sofrer de forma severa por causa da seca.

"El Nino" e "La Nina", os maus da fita

Por detrás desta tragédia que evolui lentamente em toda a África Austral e que já está a colocar cerca de 30 milhões de pessoas em risco directo e a necessitar de ajuda urgente, estão os já bem conhecidos fenómenos meteorológicos "El Nino" e "La Nina".

De uma forma simplificada pode-se explicar estes dois fenómenos como estando intrinsecamente ligados porque o primeiro consiste no aquecimento das águas no Oceano Pacífico e a segunda é o efeito contrário, o arrefecimento, que gera, em contacto com a atmosfera, forte influência nas massas de ar que circundam o planeta, gerando fortes chuvas numas regiões e seca noutras.

Estes dois fenómenos meteorológicos são responsáveis pela prolongada seca na África austral, mas têm igualmente efeitos trágicos noutras regiões do continente, como o Corno de África, por exemplo, e resultam das alterações climáticas provocadas pela poluição atmosférica e a emissão de gases com efeito de estufa, quase na generalidade produzidos pela actividade humana.

O que se passa actualmente na cidade do extremo sul da África do Sul, Cape Town, é um dos efeitos mais visíveis deste cenário e, devido ao elevado número de pessoas que nela residem, a segunda maior e mais habitada do país logo a seguir a Joanesburgo, pode vir a ser palco de uma situação dramática, possivelmente nunca vista.

Ajuda internacional

No contexto da África Austral, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), estima que o conjunto dos países mais afectadas necessitem de muitas centenas de milhões de dólares em ajuda distribuída por vários segmentos, desde a compra de sementes para relançar as culturas quando regressarem as condições, para socorrer as pessoas com necessidade imediata, para levar água e alimentos às regiões em maior dificuldade e para apoiar os governos a desenhar planos para prevenir futuras situações semelhentes.

Na primeira linha das transformações necessárias para prevenir secas deste género no futuro, estão a construção de diques e barragens, estudar alterações das culturas agrícolas tradicionais por outras mais resistentes á falta de água, avançar para campanhas de sensibilização adaptadas às culturas sociais locais para melhorar a forma de consumir a água disponível, criar sistemas de armazenamento de sementes, etc.

Apesar de em algumas regiões as chuvas que caíram recentemente possam ter aliviado ligeiramente a situação, estas são muito inferiores ao normal e longe de puderem resolver o problema que, de ano para ano, se vai acumulando.