Cyril Ramaphosa foi o líder africano que convenceu os restantes cinco homólogos, do Congo-Brazzaville, Denis Sessou-Nguesso, Zâmbia, Hakainde Hichilema, Senegal, Macky Sall, Uganda, Yoweri Musevini, e Comores, Azali Assoumani, que é o actual Presidente da União Africana (UA), contando ainda com representantes do Egipto, e assumiu a responsabilidade de falar pelo grupo, não poupando nas palavras para exigir o fim do conflito que tem em África, fora das fonteiras russas e ucranianas, as maiores vítimas desta guerra devido às repercussões económicas.

A recepção à passagem da missão pelas duas capitais, Kiev, da Ucrânia, e Moscovo, da Rússia, não tiveram a mesma repercussão, com a frieza ucraniana a esta iniciativa a contrastar com a bem mais calorosa que o Kremlin, em Moscovo, dedicou aos lideres africanos.

Na capital ucraniana, o Presidente Volodymyr Zelensky, que recebeu os seus homólogos africanos primeiro, embora tenha aproveitado para lhes pedir que intercedessem junto de Vladimir Putin para facilitar o regresso de prisioneiros de guerra à Ucrânia, disse que o esforço de Ramaphosa e dos seus colegas não é susceptível de dar frutos porque não é possível iniciar quaisquer negociações de paz com Moscovo enquanto não saírem todos os ocupantes dos territórios ocupados.

Já em Moscovo, o grupo africano foi recebido com mais pompa e mais circunstância, tendo mesmo sido organizada uma reunião alargada com Putin, no Kremlin, onde estes foram informados da visão russa dos acontecimentos desde que a invasão da Ucrânia, na denominada pelo Kremlin operação militar especial.

Nesta reunião, os lideres africanos foram confrontados com um rascunho de um acordo de cessão de hostilidades que russos e ucranianos rubricaram logo em Abril do ano passado, cerca de um mês após o avanço das unidades russas, que terá sido "esquecido" quando o primeiro-ministro britânico Boris Johnson foi a Kiev exigir a Zelensky que mandasse continuar a guerra porque disso dependeria a entrada do país na NATO, garantindo que o ocidente forneceria todas as armas necessárias até à derrota total dos russos.

OU seja, pouco ou nada foi conseguido no terreno, embora alguns analistas admitam que Ramaphosa e colegas possam ter em mãos uma missão secreta que as partes não querem para já que se saiba que está a decorrer, e que passará por mediar aproximações a um nível, por agora, ainda longe do topo das hierarquias, mas não sendo mau para início da longa caminhada rumo a um cessar-fogo.

Mas a guerra "tem de parar"

Para o continente africano, como ficou claro das palavras do Presidente sul-africano após as visitas a Kiev e Moscovo, o que é fundamental é ajudar a acabar com a guerra, não porque se trata de uma tragédia em vidas humanas perdidas, como também porque este conflito está a gerar uma catástrofe humanitária no continente mais pobre do mundo.

Isso mesmo foi admitido por Ramaphosa, que, na síntese final desta etapa da missão africana, disse aos dois lideres em contenda, que as hostilidades devem parar "já" porque o mundo não aceita que em pleno século XXI não seja possível encontrar uma plataforma diferente das trincheiras sangrentas para resolver os problemas.

"África está a sofrer ainda mais que o habitual por causa deste conflito e os confrontos devem terminar já, com os termos definitivos a serem definidos pela via diplomática e negocial", disse Ramaphosa, antes de explicar quais são os 10 pontos inseridos no mapa africano para a paz no leste europeu, que incluem aquele que é o mais difícil de digerir por ambos os lados, o respeito pela soberania territorial dos países como determina a Carta das Nações Unidas.

Esta missão chega a Kiev e Moscovo quando no campo de batalha as coisas nunca estiveram tão quentes nestes quase 16 meses de guerra, com a contra-ofensiva ucraniana a decorrer já há 12 dias e com um saldo de milhares de mortos e feridos de ambos os lados, mas substancialmente mais do lado ucraniano, como sempre sucede na parte que ataca linhas de defesa consolidas pelo inimigo.

Em síntese, se Zelensky deixou claro que só falará com os russos se estes abandonarem os territórios ucranianos para lá das fronteiras de 1991, aquando do colapso da URSS, incluindo a Crimeia, Putin garantiu que os territórios anexados são parte por inteiro da Federação Russa e não é ponto sequer para abordar em eventuais negociações.

O impasse é evidente, como o é a continuidade do sangue a correr nas trincheiras, o que não foi uma surpresa para esta missão face às declarações vindas das duas capitais mesmo antes de ter começado.

Apesar disso, o presidente da União Africana, Azali Assoumani, acrescentou ao que fora dito por Ramaphosa, que esta missão não toma parte, tem como objectivo claro ouvir os dois lados, procura perceber as razões sublinhadas por Moscovo e por Kiev, e tem como objectivo "encorajar a procura de uma solução negociada" em nome do sofrimento de todos os povos do mundo, especialmente os mais fragilizados, como são os africanos.

África em busca de um lugar decisivo na nova ordem mundial

Com esta missão, embora Ramaphosa e Assoumani não se tenham distraído quanto aos objectivos oficiais, é claramente muito mais que "apenas" ajudar o mundo a livrar-se de um conflito que a todos prejudica e a ninguém servirá no futuro, é o continente a posicionar-se para o já inevitável surgimento de uma nova ordem mundial.

Sabe-se desde o início do século XXI que China e Rússia estão, com mais ou menos intensidade, a preparar-se para desafiar a hegemonia do ocidente liderado pelos Estados Unidos, mas esse processo acelerou claramente com o início da guerra, que levou a uma aproximação existencial entre Pequim e Moscovo.

Se Rússia e China são potências globais com o azimute bem definido, que é tirar a hegemonia mundial a Washington, através da criação de uma nova ordem mundial, baseada na cooperação e entre iguais, como definiram os ministros dos Negócios Estrangeiros chinês e russo em Março de 2022, e e que depois foi reconfirmado, um ano depois, pelos Presidente russo e chinês, vez da ordem mundial baseada em regras criadas pelo ocidente no pós II Guerra Mundial, sob os pilares controlados pelo ocidente, como o FMI ou o Banco Mundial, ou mesmo as Nações Unidas, a eles se juntaram, aparentemente, potências regionais como o Irão, a Arábia Saudita, ou mesmo a África do Sul, embora de forma menos empenhada e mais equidistante.

Face a este escalar da brecha que separa Moscovo e Pequim (Teerão e Riade) do ocidente onde sobressai o eixo Washington-Londres como lideres quase incontestados na tomada de decisões que a todos os outros (União Europeia, Japão, Austrália, Coreia do Sul e Nova Zelândia), África procura com esta "ofensiva" diplomática não perder o palco deste "grand jeu" global.

E, ao integrar elementos mais próximos de Moscovo e Kiev, como a África do Sul ou a República do Congo e o Uganda, mais ligados ao ocidente, como a Zâmbia e as Comores, ou menos ligados a um e outro lado, como o Egipto e o Senegal, o continente africano consegue dar um sinal claro de que não está neste xadrez de alto nível para aderir a um dos lados, mas para negociar...

E tem aqui, provavelmente, porque é a "donzela" mais querida, não só pelos imensos e únicos recursos naturais que todos querem, mas pelo número elevado de países, 54, que podem, unidos, determinar o curso das decisões na Assembleia-Geral da ONU, uma oportunidade de ouro de recuperar em pouco tempo as décadas de exploração ocidental das suas riquezas no pós independência, que atrofiou o seu desenvolvimento, e os séculos de colonialismo que deixaram o continente à margem dos ganhos da industrialização e da criação de massa crítica e da ciência.

Impor condições aos dois mundos em colisão frontal só será possível se as lideranças africanas, como o admitem vários analistas africanos, mostrarem solidez interna e coerência nas opções diplomáticas, o que esta missão de paz para a Ucrânia parece ser um esboço desses mínimos exigidos.

E pode já estar a dar resultados, não por causa desta viagem diplomática, mas porque o mundo já não é o mesmo, como demonstra a exigência da Índia que a União Africana passe a ter um assento definitivo e de pleno direito no G20 a partir do próximo encontro do grupo dos 20 mais ricos do mundo, que terá lugar na cidade de Nova Deli, entre 09 e 10 de Setembro.