Quando as pessoas numa sociedade estão a emagrecer, significa que passam fome, que não se alimentam ou que a sua alimentação não tem os nutrientes suficientes para se manterem saudáveis.

Significa, igualmente, que a fome e a miséria, essa que "já paga IVA", numa canção de Paulo Flores e Yuri da Cunha, não podem mais ser escondidas, escamoteadas. Estão à vista desarmada. Em casa e nas ruas.

Significa ainda que as pessoas, por si só, não encontram mecanismos para debelar a sua má sorte e que o Estado se demitiu da sua função principal: defender e proteger os mais vulneráveis.

Se o cidadão tem de caçar ratos para a sua alimentação, a sua sobrevivência, não estamos apenas perante falência de regime, mas é o próprio Estado que se mostra incapaz de se reorganizar para acudir quem, de facto, dele mais necessita.

Coincidência ou não, este diagnóstico de José Cerqueira surge na semana em que são apresentadas as novas notas do Kwanza, que custaram ao país mais de 30 milhões de dólares, sem que se perceba a urgência na emissão de novas notas, para além de retirar da moeda nacional a imagem de José Eduardo dos Santos, deixando apenas a de Agostinho Neto.

Não basta deixar a imagem de Neto no Kwanza, se todas as políticas vão no sentido da não-valorização da moeda angolana e se o dinheiro não serve para o mais importante: "Resolver os Problemas do Povo".

Enquanto os angolanos vão emagrecendo todos os dias, o Executivo vai engordando as benesses para os seus membros e afins, anunciando obras para benefício próprio, como a construção de uma clínica dentária presidencial.

Incluída no Orçamento Geral do Estado revisto e inscrita no Programa de Investimentos Públicos (PIP), a construção do Centro Clínico Dentário da Presidência da República custará aos angolanos 3,3 mil milhões de kwanzas, equivalentes a cinco milhões de dólares norte-americanos.

Como despender tanto dinheiro para o benefício dos próprios governantes se, em Massangano, no Kwanza Norte, crianças de seis/oito anos como os pequenos Mig, Passy, Minguito, Branca, Nucho e De Pipá atravessam sozinhas, diariamente, o rio Kwanza, ximbicando as suas próprias canoas para ir à Escola, por falta de escola na sua região?

É difícil compreender o reforço da dotação orçamental da Presidência da República no primeiro rectificativo da crise Covid, se os 5.568 alunos da comuna de Ikoka, município de Kimbele, província do Uíge, estão há mais de cinco anos à espera da construção de escolas para todos os níveis de ensino.

Enquanto esperam e desesperam, as crianças e jovens de Ikoka vão «estudando» em casebres, sem quaisquer condições, com chão de terra batida, sem carteiras, sem paredes, apenas com tectos de palhas. Sem dignidade.

Se, segundo Amílcar Cabral, "a Educação está na base do Poder do Povo", como não pensar nos mais de milhão e meio de crianças angolanas excluídas sem escola e nas centenas de milhares que diariamente são forçadas a atravessar a pé as fronteiras para poderem estudar nos vizinhos Congo e Namíbia?

É difícil perceber como se consegue, tranquilamente, alocar dinheiro público a gastos contextualmente supérfluos se mais de 20 por cento das crianças dos 5 aos 11 anos não frequentam o ensino primário, e que pelo menos 50 por cento dos adolescentes entre os 12 e 18 anos não estudam o ensino secundário.

Apesar de ter subscrito o Acordo de Dakar de 2000, segundo o qual os países deverão investir 20 por cento dos seus orçamentos no sector da educação, para alcançar a universalização do ensino primário de qualidade, infelizmente nem o anunciado OGE rectificativo dá sinais de efectiva correcção da dotação de 6,9 por cento destinados ao sector, mantendo o país muito aquém da maior parte dos estados africanos.

Sendo a Educação a única via para o combate à pobreza, para o desenvolvimento da sociedade e para corrigir as desigualdades sociais, em tempo pós-Covid em que é necessário construir escolas com condições sanitárias adequadas, com água, luz, wc e preparar os mais novos para o cada vez mais incontornável digital, é difícil entender a aposta numa clinica dentária para políticos e familiares.

Se a primeira lição Covid é que entramos numa era de vírus e bactérias democráticas que contagiosamente atingem a todos sem discriminação de status, como faz o corona, causa perplexidade nos tempos de hoje criarem unidades hospitalares para os mwatas, deixando os ngadiâmas definharem.

Se a primeira condição para sermos cidadão é a nossa identificação, o nosso registo, como aceitar que a rubrica "Massificação do Registo Civil e atribuição de Bilhete de Identidade" sofra um corte de quase mil milhões em relação à primeira versão do Orçamento, voltando a valores semelhantes aos atribuídos em 2019, como reportado pelo Novo Jornal?

É difícil entender essa redução ao mesmo tempo que se constrói a clínica presidencial, quando há mais de 12 milhões, 40 por cento, de angolanos que "não exercem em pleno o exercício de cidadania, por falta de Bilhete de Identidade e Assento de Nascimento", segundo o próprio ministro da Justiça e dos Direitos Humanos.

Segundo o PDN 2018-2022, em 2022, 70 por cento da população angolana deve ter Bilhete de Identidade. Atendendo às previsões de crescimento populacional do INE, significa que se devem registar 12 milhões de pessoas até 2022 - um aumento de 90 por cento. Não é possível baixar as despesas com o registo no OGE e cumprir o PDN.

Quem governa gere recursos sempre escassos para as demandas da sociedade, daí a atribuição de prioridades. O que torna imperceptível é essa prioridade atribuída à saúde dentária de meia dúzia, enquanto uma maioria vai emagrecendo até à morte.

Se gerir dinheiros públicos é atribuir prioridade aos problemas mais candentes da sociedade, será que os dentes executivos estão entre esses problemas?

O grito de socorro, mesmo que silencioso, está aí. Está nas ruas. Não está no Conselho de Ministros, onde pululam auxiliares que, por tacticismo ou oportunismo, nos seus relatórios pintam o mapa de Angola de cor-de-rosa, apenas para manter o cargo e as benesses daí advindas.

Durante muitos anos, JES, enquanto presidente, fechou-se no seu casulo, com medo do Povo. Ouvia e via apenas os seus bem instalados pares e aparelho securitário que não levavam os problemas das comunidades ao Palácio.

É assim que o homem passou a acreditar na lengalenga do seu núcleo restrito, chegando ao ponto de se convencer de que era muito amado e que o povo estava muito satisfeito com o seu desempenho. Era o país das Maravilhas propagandeado pelos media públicos.

Hoje, segundo membros da sua família, o ex-presidente tem apenas uns poucos membros da oposição a confortá-lo na sua velhice política e física. Do seu próprio partido nem uma viva alma. Faltou a JES ir e ouvir a rua.

Depois do 27 de Maio de 1977, a DISA transformara-se num antro de ajuste de contas, assassinatos por encomenda e outros males. Neto foi à rua, ouviu as pessoas, as lamentações e murmúrios e, quando regressou ao Palácio, percebeu que os enfeitados relatórios dos seus colaboradores estavam cheios de inverdades. E dissolveu a DISA.

Parece que a Pirâmide de Maslow está invertida. Porque ainda as necessidades básicas das populações não estão resolvidas e o Governo já virou as suas baterias para as necessidades dos membros do Executivo.

Se o pior cego é aquele que não quer ver e se o autismo político atrofia a sociedade, políticos a viver numa redoma, como fazia Michael Jackson, é efectivamente um mau sintoma e, normalmente, acabam mal.

Ninguém pode ficar indiferente ao ouvir o clamor de uma criança de nove anos que faz circular, nas redes sociais, a sua indignação sobre o estado da saúde em Angola, dizendo, taxativamente, "quando é (para) o Presidente, o ministro, a ministra há sempre soluções, mas para o povo nunca há. Sr. Presidente, por favor, veja isso. Isto é grave".

Se se mantiverem estas políticas, "infelizmente, vamos mudar pelo caminho mais duro. Se o país continuar assim, não passam muitos meses e praticamente vamos ter de declarar falência", adverte José Cerqueira na mesma entrevista, referindo-se às políticas económicas e sociais que estão a ser seguidas.

Os emagrecidos à força são a falência humana.