A odisseia começa por volta das 04h00 da manhã. Firmino levanta- -se a essa hora e faz-se à estrada para, rapidamente, chegar à cidade. Morador do Ramiros, a pouco mais de 30 km da cidade de Luanda, faz o trajecto todos os dias. Desta vez tem de se levantar um pouco mais cedo porque, além de trabalhar no centro, precisa de tratar de um documento.

O registo criminal é o papel que falta para completar um processo que pode fechar a jornada do jovem na luta por um emprego melhor. Para sua felicidade, o seu nome figura numa lista de pessoas que foram aprovadas num concurso público lançado pelo Ministério da Energia e Águas.

A correria em busca dos documentos necessários para completar a candidatura está na ordem do dia e com prazos definidos. Um dia a menos pode ditar a sentença e a frustração por um objectivo não alcançado, depois de muita luta. Apesar da época fria, o sol começa a raiar cedo. Firmino é das primeiras pessoas a chegar à fila.

A espera pelo momento de ser atendido começa a contar. Dez pessoas antecedem-no. A esperança de ter o processo concluído e com um atendimento à altura começa a frustrar-se, quando dá conta que algumas pessoas estão a ser atendidas sem obedecer à ordem de chegada e com algum privilégio, acompanhados por uma pessoa que se revela eficiente. Aparentemente trata-se de uma pessoa alheia ao serviço, mas que domina os cantos da casa.

Trata-se de um rapaz que aborda os cidadãos e convence-os a resolver o problema, em pouco tempo e sem que tenham que aguardar na longa fila e longe dos motivos que geram impaciência e que contrastam com a vida dos que têm um quotidiano cronometrado.

À medida que o tempo avança, Firmino começa a convencer-se de que o esforço foi em vão. Acordar cedo para chegar às 10h00 horas sem ser atendido, depois de muito tempo de espera numa fila que escoa a passo de caracol, não vale a pena. Esgota- -se a paciência e as reclamações são feitas em viva voz, à semelhança de outros que com ele aguardam. Nós temos mais do que fazer, diz um dos impacientes. Mais ao fundo da fila, outro utente pergunta: Quando é que a fila vai andar?.

Tiro certeiro

A reacção fria dos funcionários da referida repartição fiscal dá a entender que estão pouco preocupados com o que se passa. Atender ao cidadão pode ser tudo menos um direito que lhes é conferido constitucionalmente.

Com a impressão de que o tempo começa a correr, já com uma falta garantida no local de trabalho, Firmino ausenta-se da fila e recorre ao «esquema ». É um tiro certeiro. Em pouco menos de 30 minutos, o registo criminal está nas suas mãos. A sensação de alegria dá espaço ao alívio, já que o jovem ainda tem muito para percorrer.

Finda a jornada, com um dia de trabalho perdido, Firmino conta a aventura a um compadre que, depois de ouvir a história, apenas diz: Perdeste tempo em ir lá e aguardar na fila. Há quem receba o documento em casa, depois de enviar os dados pessoais e uma massa aos putos que tratam disso.

Com espanto, o jovem apenas sabe que não pretende repetir a experiência e no futuro terá, necessariamente, de recorrer aos serviços paralelos à porta das instituições, onde tratar de um simples documento pode ser uma dor de cabeça.

Episódios idênticos acontecem diariamente. Muitos já tiveram a oportunidade de viver esta realidade na Direcção Nacional de Viação e Trânsito e nas conservatórias, onde a maior reclamação prende-se com o mau atendimento que é dado aos cidadãos da parte de muitas das funcionárias que ali trabalham.

A arrogância ou, muitas vezes, a indiferença perante o cidadão, são algumas notas negativas registadas nestes locais. Para espanto de muitos, o livro de reclamações está disponível para que cada um exponha as suas inquietações, mas a nossa reportagem verificou nalgumas das repartições onde se deslocou que o registo estava em branco ou com papéis arrancados, alguns com obscenidades escritas nas suas páginas com longos intervalos entre uma e outra.

Este livro nunca chega aos chefes. O que temos de fazer é só aguentar mesmo, reage um cidadão, que aguarda pelo assento de nascimento, documento que está dependente apenas da assinatura do conservador que, segundo informações, ainda não tinha chegado ao gabinete, apesar de o relógio já marcar 09h47.

Alguns optam por resolver as questões por telefone

A facilidade de comunicação ou a aproximação que existe com alguns funcionários ou matocheiros [nome dado às pessoas que ficam à porta para acelerar o processo] ajudam na facilitação do pedido que, na Direcção Nacional de Viação e Trânsito, vai, por exemplo, desde a obtenção de um registo inicial ao verbete provisório ou a um livrete, no espaço de uma semana. Levar a viatura e ser atendido de forma eficiente e acelerada, a troco de alguns valores, que variam de acordo com a negociação, é o objectivo. Para outros, enviar os dados do veículo é suficiente, tudo o resto é mais fácil.