Só que, desta feita, Vladimir Putin não estava a dizer que a Federação Russa está "sempre pronta" para um confronto com os seus adversários, apesar de reafirmar a prontidão combativa das suas forças, estava a dizer estar pronto para evitar a guerra do fim do mundo.

Não é novidade para ninguém que se um dia deflagrar um conflito entre russos e norte-americanos, como os Presidentes Joe Biden e Vladimir Putin admitiram no início deste conflito, nada nem ninguém poderá travar uma escalada para uma devastadora guerra nuclear.

E esse confronto não estava tão perto de acontecer como no contexto desta guerra na Ucrânia desde a famosa crise dos misseis de Cuba, em 1962, não pelo gigantesco fluxo de armas ocidentais para a Ucrânia, mas pela crescente manifestação de disponibilidade para enviar tropas ocidentais para o campo de batalha.

Só nas últimas duas semanas, os Presidentes da França e da Estónia defenderam o avanço de unidades militares ocidentais para a batalha na Ucrânia, e o líder republicano na Câmara dos Representantes do Congresso dos EUA disse que enviar forças para a guerra está em cima da mesa.

Estas movimentações perigosas surgem numa altura em que as forças da Ucrânia na linha da frente podem vir a colapsar face ao avanço das forças russas aproveitando a clara superioridade, ganhando dezenas de localidades só nas últimas duas semanas.

Foi neste contexto que Putin ordenou a realização de exercícios de prontidão dos seus sistemas de armas nucleares tácticas, que permitem circunscrever o poderio atómico a uma geografia restrita, ao contrário das armas nucleares "normais", o que permite travar momentaneamente esses planos ocidentais e dar consistências aos avanços no terreno de batalha.

Porém, hoje, no discurso perante as tropas em parada na Praça Vermelha mas dirigido ao mundo, o chefe do Kremlin, apesar de repetir a "permanente prontidão" das forças russas para quaisquer cenários, optou por uma abordagem menos belicista.

E garantiu que tudo fará para evitar que o mundo avance para o descalabro de uma guerra global entre potências nucleares que só teria uma tradução... o fim do mundo tal como o conhecemos.

"As forças estratégicas russas estão sempre em alerta contra ameaças à soberania do país, mas tudo faremos para evitar uma colisão global", afirmou Vladimir Putin, aproveitando o momento para lançar, todavia, uma farpa contra os lideres ocidentais.

Disse o Presidente russo: "O Ocidente gostaria de esquecer as lições deixadas pela II Guerra Mundial, mas nós não nos esquecemos, e vamos sempre lembrá-los, que o destino da Humanidade foi decidido em grandiosas batalhas nas proximidades de Moscovo e Leninegrado (hoje São Petersburgo)".

Acusou o ocidente de tentar branquear o nazismo ao colocar elementos desse período em pedestais, destruindo monumentos de homenagem aos bravos heróis de efectivamente derrotaram o nazismo e de homenagear nazis, como sucedeu recentemente no Canadá com um antigo soldado nazi que combateu na Ucrânia integrando os esquadrões que assassinaram milhares de judeus e russos.

Putin referiu-se com ênfase redobrado às épicas batalhas de Moscovo e Leninegrado entre o Exército Vermelho e as forças alemãs nazis de Adolf Hitler, que se não fossem ali derrotadas, à custa de mais de 20 milhões de russos mortos, nada poderia travar os alemães de conquistarem toda a Europa.

Neste discurso, claramente apontado aos lideres ocidentais, não só pelo apoio militar a Kiev mas também devido aos sucessivos pacotes de sanções que visam debilitar a economia russa, Vladimir Putin admitiu que o seu país "atravessa uma fase muito difícil" da sua história, apelando ao contributo de todos os russos para o ultrapassar.

E, nomeando de novo o conflito na Ucrânia como uma "operação militar especial", ao invés de guerra, como o fez recentemente, disse que este 79º Dia da Vitória está a ser comemorado nesse contexto, dirigindo-se especialmente aos que ali combatem como "heróis da Rússia".

A novidade neste discurso foi, no entanto, a predisposição de Putin para evitar um confronto directo entre russos e a NATO, o que não pode deixar de ser visto como uma nova investida do chefe do Kremlin na afirmação da sua disponibilidade para conversar com EUA e aliados para encontrar uma saída para o conflito no leste europeu.

Curiosamente, na entrevista que o Presidente norte-americano, Joe Biden, deu à CNN, nas últimas horas, nem uma palavra sobre a guerra na Ucrânia foi usada para as headlines subsequentes nos media internacionais, ou por não terem existido ou porque são menções marginais...

Mas, como era esperado, depois de ter aberto caminho para a aprovação do pacote de ajuda militar a Kiev na Câmara dos Representantes, de maior republicana, o líder desta câmara baixa do Congresso, Mike Johnson, está já sobre brasas, com os seus colegas de bancada a procurar destituí-lo, o que só não foi já conseguido por este contar, curiosamente, como o apoio dos democratas de Joe Biden.

Dinheiro russo, dinheiro ucraniano...

Só que a resposta ocidental tem sido o contrário a uma abordagem que permita passar a batalha das trincheiras do leste ucraniano e oeste russo para o centro da mesa onde os lideres conversam para encontrar soluções, como ficou claro com o quase simultâneo anúncio por parte da União Europeia sobre o uso dos fundos russos congelados nos seus bancos.

Com efeito, nas últimas horas foram divulgadas notícias sobre um entendimento global, faltando ainda acertar agulhas, sobre o uso dos juros obtidos com os mais de 200 mil milhões de euros de fundos russos congelados em bancos europeus para financiaras despesas de Kiev com a guerra.

Dos cerca de 300 mil milhões USD que a Rússia tinha depositados em bancos e instituições financeiras ocidentais, 200 mil milhões estão na Europa Ocidental, os restantes nos EUA, quase integralmente.

Esta questão tem vindo a ser debatida há meses, face às dificuldades da União Europeia de conseguir consensos para aprovar financiamentos para Kiev, mas a questão ficou em banho-Maria porque poderia ser aberto um precedente que assustaria os outros Estados que escolheram a Europa para guardar os seus fundos.

E a razão é simples. Como reagirão países como a Arábia Saudita, a China, a Índia, ou alguns petroestados africanos com grandes somas guardadas nos cofres da Europa ocidental, visto que de um momento para o outro, bastando a história sofrer um tropeção, esse dinheiro não pode apenas ser congelado como pode vir a ser "roubado"?.

Esse tem sido o ponto de ebulição das discussões sobre este tema, mas, ao que tudo indica, os europeus, fortemente pressionados pelos norte-americanos, já chegaram a um consenso e vão mesmo usar os fundos russos, não, para já, integralmente, mas apenas os juros que estes rendem anualmente, que é na casa das centenas de milhões de euros.

Ora, sobre isso, o Kremlin já disse que se trataria de um roubo descarado e que haveria consequências reciprocas, embora os volumes a que Moscovo pode aceder nas suas instituições financeiras é incomparavelmente inferior.

As consequências mais nefastas para os europeus poderão chegar da desconfiança que a partir desse momento tombará sobre o seu sistema financeiro, sendo que todos os países com regimes que geram algum tipo de fricção com Bruxelas, desde logo, mas não só, as monarquias do Golfo, poderão reagir preventivamente sacando os seus fundos antes que seja tarde.