A peça apresenta-nos um monarca envelhecido que, por orgulho e desejo de ouvir apenas lisonjas, comete uma decisão estruturalmente errada: dividir o seu reino entre as filhas com base em declarações artificiosas de afecto, desconsiderando sinais claros de falsidade e ignorando conselhos prudentes. O resultado é a desagregação política e social do reino, acompanhada pela degradação pessoal do soberano, que passa da ostentação do poder à completa ruína. Autores contemporâneos, como Edward Bond, no seu Lear (1971), ou mesmo Harold Bloom, que em Shakespeare: The Invention of the Human (1998) recupera a densidade filosófica da peça, sublinham a actualidade da narrativa como advertência contra os perigos do poder exercido em nome da vaidade e da cegueira voluntária. É neste enquadramento que podemos situar a reflexão sobre a desdolarização em Angola: uma medida inicialmente apadrinhada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e posteriormente apropriada por alguns "iluminados", mais preocupados com agendas pessoais do que com o bem comum, acabando por expor o povo às consequências de escolhas mal calibradas, como o reino de Lear sucumbiu à temeridade do seu soberano.
O conceito de desdolarização assenta, em termos teóricos, no princípio de que a moeda nacional deve ser o principal meio de pagamento e de reserva de valor no País, constituindo-se como pilar da soberania económica. Há, portanto, mérito intrínseco em procurar reduzir a excessiva dependência de uma moeda estrangeira, pois, tal garante maior autonomia da política monetária. Contudo, no caso de Angola, cuja economia permanece fortemente dependente do petróleo, a implementação de políticas de desdolarização exige prudência e adequação ao contexto. A debilidade persistente da produção nacional não-petrolífera, que deveria assegurar a sustentação do valor da moeda nacional, fragiliza os fundamentos dessa estratégia. Na ausência de um tecido produtivo diversificado, a alternativa prática tem sido ancorar a moeda nacional nas reservas internacionais líquidas (RILs), mecanismo que guarda semelhanças com o currency board, aplicado na Argentina no final da década de 1990. Todavia, a experiência argentina terminou de forma abrupta, quando a escassez de reservas impossibilitou a defesa do peso, precipitando uma acentuada desvalorização e uma grave crise económica e social. Em Angola, a conjugação da crise internacional do sector petrolífero de 2014 com o acelerado endividamento externo em maturidades curtas reduziu drasticamente a capacidade das reservas em sustentar o Kwanza, expondo de forma inequívoca as fragilidades de uma desdolarização conduzida sem a devida contextualização estrutural.
Ora vejamos,
A realidade monetária de Angola apresenta inquietantes semelhanças com a situação de Rei Lear. Antes mesmo da implementação da política de desdolarização, em 2011, a conjuntura cambial era estruturalmente frágil, pois a oferta de divisas encontrava-se quase exclusivamente assegurada pelo Tesouro e, em muito menor proporção, por alguns agentes privados remunerados em dólares. A decisão de avançar com a desdolarização agravou ainda mais a escassez de moeda estrangeira, deixando o Tesouro como praticamente a única fonte de divisas no mercado. Esta vulnerabilidade ficou dramaticamente exposta com a crise internacional do sector petrolífero de 2014, quando a queda abrupta do preço do barril reduziu significativamente as receitas de exportação e, consequentemente, a disponibilidade de divisas. O impacto foi imediato nas RILs, que a 31 de Dezembro de 2013 ascendiam a 31,17 mil milhões de dólares, mas que caíram para apenas 13,30 mil milhões no final de 2017 - uma redução de cerca de 57% em apenas quatro anos. Esta contração coincidiu com o último mandato do Presidente José Eduardo dos Santos e traduziu-se numa perda acentuada da capacidade de o Banco Nacional de Angola (BNA) sustentar a moeda nacional.
O segundo eixo desta estratégia falida residiu no recurso excessivo ao endividamento externo de curto prazo. Numa espécie de deriva de negação dos fundamentos macroeconómicos, o Executivo, em vez de proceder ao indispensável ajustamento das políticas orçamental e monetária após a queda das receitas petrolíferas, optou por manter uma agenda expansionista, financiada por dívida externa. O resultado foi uma deterioração rápida da sustentabilidade das finanças públicas: o rácio dívida/PIB, que em 2013 se situava em 33,15%, quase duplicou, alcançando os 69,26% em finais de 2017 - um agravamento de cerca de 109% em apenas quatro anos. Em paralelo, a principal fonte de receitas do Estado, o petróleo, sofreu uma contração significativa: de 41,09% do PIB em 2013 para 34,29% em 2017, uma queda relativa de 16,5%. Esta combinação de factores expôs de forma inequívoca a fragilidade da opção do Executivo, que procurou sustentar artificialmente o gasto público à custa de um endividamento insustentável em vez de enfrentar o necessário ajuste do quadro macroeconómico.
A tomada de posse do Presidente João Lourenço, em setembro de 2017, trouxe consigo um lema sugestivo e carregado de expectativa: "Melhorar o que está bem, e corrigir o que está mal." Ora, entre as medidas que claramente não estavam a produzir os resultados desejados encontrava-se a política de desdolarização. O indicador mais evidente da sua ineficácia era a trajetória da moeda nacional, que se depreciou de Kz 96,5 por dólar em 2014 para Kz 165,9 por dólar em 2017 - uma desvalorização de 72%. Tal evolução tornava inegável que uma das áreas que "estava mal" era precisamente o funcionamento do mercado cambial, profundamente distorcido pela medida estrela implementada pelo BNA, com o beneplácito do FMI em 2011, mas contra os pareceres técnicos dos Ministérios das Finanças e do Planeamento, que já então alertavam para os riscos de impor uma estratégia sem a devida ancoragem estrutural.
A equipa económica, em vez de corrigir o rumo, preferiu insistir no erro - como se a repetição de más decisões tivesse o condão de produzir bons resultados. A escassez de divisas, longe de ser mitigada, agravou-se sobretudo a partir de 2022, quando, em plena euforia eleitoral, o Executivo optou por financiar o gasto público como se as reservas internacionais fossem um poço sem fundo. O resultado foi previsível: a rápida exaustão das reservas e a insustentabilidade das finanças públicas. Ironia das ironias, esta deriva expansionista conseguiu quase apagar os ganhos alcançados com o programa de estabilização do FMI entre 2019 e 2021. O Kwanza, que em 2022 se valorizara artificialmente, acabou por sucumbir à realidade, desvalorizando-se até Kz 912,00 por dólar a 31 de dezembro de 2024, face aos Kz 165,90 de 2017. Estamos a falar de uma queda de cerca de 450%, um colapso monumental que não precisa de mais explicações técnicas: é a prova cabal de que, quando a vaidade e a política se sobrepõem à razão económica, o resultado só pode ser desastroso. Pasme-se!
Qual é, afinal, o denominador comum entre a implementação da desdolarização avalizada pelo Presidente José Eduardo dos Santos e a condução da política económica do Presidente João Lourenço? A resposta parece residir na composição da equipa económica, que, à semelhança de Rei Lear, persiste em não aceitar que a desdolarização foi um erro monumental e, pior ainda, não apresenta medidas alternativas credíveis para corrigir o tiro. O problema não é apenas de estratégia, mas também de fundamentos: revela-se aqui um preocupante défice de conhecimento sobre macroeconomia e sobre o próprio funcionamento da economia real. Alguns "iluminados" continuam a vender a ideia sedutora de que é possível substituir importações - sobretudo de bens da cesta básica - com o aumento da produção nacional. Contudo, esquecem o detalhe mais elementar: não haverá produção nacional sustentável sem um ambiente macroeconómico estável e previsível, amigo das empresas e do investimento privado. É preciso, no mínimo, não ter lido um só manual de advanced macroeconomics para acreditar que com inflação acima dos 23%, uma moeda em contínua desvalorização e a ausência de crédito a juros razoáveis será possível criar as condições para produzir localmente os bens e serviços necessários para alimentar e servir o povo.
A solução passa, antes de mais, por sentar-se com as petrolíferas estrangeiras e convencê-las a domiciliar todos os proveitos da exportação do petróleo bruto nos bancos locais. Nesta fase aguda, pouco importa a estrutura accionista desses bancos; o essencial é que os cerca de 30 mil milhões de dólares circulem pela banca nacional, funcionando como lastro do valor do kwanza. O povo precisa compreender que a crónica ausência de divisas não é um destino inevitável dos angolanos, mas consequência directa da incompetência e da complacência daqueles que compõem a equipa económica. Em segundo lugar, o Tesouro deve deixar de eclipsar as empresas nacionais na captação de financiamento interno. É necessário criar espaço para que os bancos encarem a concessão de crédito à economia não como um favor, mas como o seu principal modelo de negócio - e, para tal, o Tesouro não pode concorrer com as empresas por recursos financeiros junto do sistema financeiro. Estas soluções são de conhecimento geral, sussurradas nos corredores do poder, mas poucos se atrevem a levantar a voz para assinalar o que estava mal - e que apenas se agravou nos últimos oito anos. Tal como em Rei Lear, persistir em ignorar a razão e os avisos prudentes conduz à ruína: enquanto o soberano se cega pelas próprias decisões, o reino - ou, neste caso, a economia e o bem-estar do povo - paga o preço mais alto.
Como bem dizia Edmund Burke (1729-1797), filósofo e estadista irlandês: "A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons nada façam." Esta máxima aplica-se, de forma inquietante, à gestão económica de Angola: a persistência em políticas públicas falidas, a recusa em ouvir avisos prudentes e a complacência perante erros estruturais acabaram por colocar o bem-estar do povo em segundo plano, expondo a sociedade às consequências inevitáveis da negligência e da vaidade daqueles que detêm o poder.
*Professor Auxiliar de Economia e InvestigadorBusiness and Economic School - ISG