O centro do diálogo foi A Prece dos Mal-Amados, romance publicado em 2005, que continua a ecoar nas discussões sobre mestiçagem, exclusão e pertença.Fragata falou comovidamente, revelando que este livro, ao contrário de outros que escreveu, não lhe trouxe prazer, mas lágrimas. "Revi-me em muitas das situações aqui, como mestiço que sou, como nacionalista que sou, como alguém que conheceu a segregação aos 15 anos, durante o exílio", confessou.
A história de A Prece dos Mal-Amados gira em torno de Nazamba, uma jovem mulher angolana arrancada do seu ambiente familiar e levada para Portugal, acompanhada pelo pai - um português retornado. O que poderia ser uma travessia de reencontro transforma-se num exílio forçado, onde a discriminação, o racismo e a intolerância continuam a marcar o quotidiano. Portugal, longe de ser refúgio, revela-se espelho das mesmas exclusões que Nazamba já conhecia em Angola.
Com o tema da mestiçagem como pano de fundo, o romance não se limita a narrar uma história individual. É uma metáfora sobre fronteiras invisíveis, identidades suspensas e a dor de não pertencer plenamente a lugar nenhum. A mestiçagem, aqui, não é celebração: é sinónimo de conflito, marginalidade, silêncio imposto. E é nesse espaço que Fragata inscreve a sua literatura - como gesto de denúncia e resistência.
Durante a conversa, o autor revelou que muitos leitores lhe pediram uma continuação da obra. Queriam saber mais sobre Nazamba, sobre o seu destino, sobre as feridas que ficaram abertas. Mas Fragata surpreendeu ao anunciar que não haverá um segundo volume. Em vez disso, prepara uma nova edição de A Prece dos Mal-Amados: mais breve, mais intensa e com um final ainda mais dramático. "Os leitores vão sentir que Nazamba termina a sua viagem de uma forma inesperada", disse, sem revelar pormenores. O murmúrio na sala foi de surpresa e antecipação.
Essa reedição, explicou, não é apenas um exercício editorial. É uma forma de reabrir a obra, de lhe dar novas camadas de dor e sentido. Afinal, não são todos os dias que um escritor regressa à sua própria criação para a recontar de maneira diferente. E quando esse escritor é alguém que viveu na pele os dilemas da mestiçagem, o gesto ganha outra dimensão.
Fragata de Morais nasceu no Uíge, em 1941. Diplomata de carreira, atingiu a categoria de Embaixador e ocupou cargos de relevo como Vice-Ministro da Educação e Cultura, Secretário-Geral do Conselho Nacional de Comunicação Social e Presidente da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos. Como escritor, construiu uma obra plural e reconhecida, com títulos como Como Iam as Velhas Saber, A Seiva, Inkuna Minha Terra, Jindunguices (Prémio Literário Sagrada Esperança), Momento de Ilusão, Amor de Perdição, Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos e A Sonhar Se Fez Verdade.
A conversa no Instituto Camões foi também um espaço para pensar o papel da mulher na sociedade angolana, os desafios da juventude e a urgência de cultivar a memória histórica. Mas foi sempre na literatura que regressávamos para encontrar chão e horizonte. A mestiçagem, em particular, ganhou contornos mais amplos. Fragata sublinhou que não deve ser entendida apenas como cruzamento biológico ou cultural, mas como espaço de conflito e de reinvenção. A mestiçagem, sublinhou, é muitas vezes sinónimo de marginalidade, de identidades que não encontram lugar definido.
Ao escutar Fragata, percebi o quanto a literatura pode ser um espelho das tensões sociais. A Prece dos Mal-Amados é, de certo modo, um romance sobre Angola, mesmo quando se passa em Portugal. É um livro sobre as feridas coloniais, mas também sobre o presente em que ainda se discutem pertenças, purezas e fronteiras.
Muitos saíram dali a pensar em reler A Prece dos Mal-Amados. Outros aguardam ansiosamente pela nova edição prometida. Pessoalmente, saí com a convicção reforçada de que a literatura angolana continua viva, pulsante, capaz de dialogar com as nossas inquietações mais íntimas e colectivas.
*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto

*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto