Por uma questão de honestidade intelectual, e não sendo o Tango a minha especialidade, preferi silenciar o virtuosismo fácil, a vaidade, e entregar-me ao estudo - escutar vozes, ler obras, seguir rastos na vasta bibliografia disponível (Héctor Benedetti, Javier Campo, Antón Gazenbeek, et. al,). Desse labor nasceu este texto, que não é uma "memória científica original", mas, no entanto, se pretende que cada argumento se afine como instrumento em grande orquestra, compondo um quadro mais nítido das rotas e influências que atravessam oceanos de vidas. Porque, entre Buenos Aires e Luanda, entre o bandoneón e o batuque, há um mesmo sopro atlântico, que continua a segredar histórias, passos e memórias, no compasso do tempo.

Afinal, viagens de um ritmo que atravessa oceanos.

Assim, responde-se agora de forma mais fundamentada àquela interpelação inicial, com a convicção de que o diálogo sobre as raízes do Tango- o Jazz e o samba- só se enriquece quando atravessa mares e memórias.

A música como ponte entre continentes e corações

O tango nasceu de um cruzamento improvável, e talvez por isso seja tão universal. No compasso binário que os salões portenhos consagraram, ainda ecoa a batida do candombe africano que veio de Angola, atravessou o Atlântico e desembarcou nas margens do Rio da Prata.

O escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino, de Buenos Aires, Jorge Luis Borges (1899-1096), considerado um dos grandes do século XX, com seu olhar de arqueólogo da cidade, lembrava esse passado mestiço, ainda que o preferisse envolto em "sombras de arrabal", ou seja associado " a imagens ou sensações de tristeza, abandono ou melancolia relacionadas com subúrbios, especialmente aqueles habitados por gente humilde, classes trabalhadoras; atmosferas muitas vezes ligadas a sentimentos de solidão e desamparo".

Borges tinha uma relação ambígua com o Tango. Amava-o como expressão autêntica da periferia portenha, mas não apreciava a versão "polida" que a Buenos Aires burguesa exportou. Nos seus ensaios e nas famosas conferências sobre Tango, sublinha que esta música nasceu de "misturas marginais"- bordéis, favelas, praticantes de candombe negro, imigrantes espanhóis e italianos- antes de ser "tratado, retocado, limpo" para os salões.

Borges sublinha, com uma pontinha de vergonha, a componente africana no Tango: o ritmo "swingado" do candombe, que chegou via Montevidéu e Buenos Aires, tatuando a cadência inicial do Tango. Mas, a leitura atenta de "El Tango: Cuatro conferências" de Borges, leva-nos a admitir que o "verdadeiro tango" comportava alguma marginalidade e nostalgia- e não de espectáculo folclórico. Essa música também carrega uma alma Bluesy, negra.

O genial Julio Cortázar, não só um dos escritores mais talentosos da segunda metade do século XX, mas também um dos contistas mais notáveis de todos os tempos, nascido em Bruxelas, a 26 de Agosto de 1914 (e falecido em 1984), foi um argentino condenado à errância e ao exílio, por dissonâncias face ao peronismo.

Um protagonista de um dos mais belos contos de Cortázar "O Perseguidor" é visivelmente inspirado num grande nome do Jazz: o saxofonista Charlie Parker.

Cortázar, por sua vez, ouviu no Jazz a mesma liberdade que o tango um dia teve - ambos filhos da diáspora negra, ambos adaptados por cidades- Buenos Aires e Montevidéu- que os vestiram de fatos chiques, mas não lhes tiraram a alma.

Apesar de raramente ter escrito sobre Tango ( escreveu magistralmente sobre Jazz ensaios insubstituíveis) Cortázar reconhecia nele uma melancolia próxima do Blues. De acordo com o Escritor, o Jazz e o Tango carregam raízes e elementos afrodescendentes.

Carlos Gardel ( 1890-1935), na foto, com a sua voz imortal, deu ao tango uma dimensão mitológica verdadeiramente mundial. É um mito que sobrevive ao tempo. A sua voz cristalizou o tango-canção, mas também o afastou, aos olhos de puristas como Borges, da sua rudeza inicial. Gardel teve o mérito de fazer do Tango algo cantável, sentimental, e universalizou-o. A sua morte trágica em Medellín, em 1935, fixou-o no imaginário popular como figura eterna.

Vinicius Portenho

Vinicius de Moraes, o diplomata de Ipanema, não foi apenas o "poetinha" da Bossa Nova, foi igualmente, como disse Jobim, "uma criatura vasta, ubíqua, um ser inesquecível", um homem do mundo e permanente apaixonado pela música alheia tanto quanto pela brasileira.

Durante as suas estadias como Cônsul, Buenos Aires ( e em menor escala Montevidéu), tornou-se para ele porto sentimental. Amava os cafés, as conversas intermináveis e, claro, o Tango, que, segundo dizia, era " irmão de sangue" do samba-canção, pela mesma nostalgia e dor elegante. o irmão melancólico do samba-canção: duas formas de traduzir em música a saudade e a resistência que a história deixou como herança aos povos mestiços.

E mais: Vinicius entendia que ambos vinham de encontros e tensões culturais: no Brasil e no Rio da Prata, e celebrava essa mestiçagem sem hierarquias, nem preconceitos.

E agora, antes de deixar o Atlântico, socorro-me da jornalista cultural argentina, Liana Wenner, autora do "obrigatório" Vinicius portenho, para sublinhar e apresentar a obra: " com o seu estilo carismático e a sua inegável vocação para fazer amigos, Vinicius de Moraes conquistou o coração dos argentinos e uruguaios durante o período que passou em Buenos Aires e Montevidéu, entre os anos 1960 e 1970. Ali, à beira do Rio da Prata, o poeta tornou-se um mito.

Vinicius portenho é um perfil envolvente do poeta e um retrato excelente de um período único, explorando os seus shows lendários, com Toquinho, Maria Creuza e Bethânia- , como no histórico no clube La Fusa.

Não resisto a deixar aqui o seguinte detalhe: Vinicius casou-se com uma argentina! E a mujimbo, aqui: Marta Rodríguez Santamaría conheceu Vinícius quando era jovem e ficou encantada com a poesia do Mestre da Vida, especialmente a canção "Se Todos Fossem Iguais a Você". Viajou para o Uruguai e lá o encontrou, iniciando um relacionamento que resultou em casamento, que durou de 1975 a 1978... Ah! Vina...

Compasso final

A história do tango e do samba não é apenas feita de compassos e melodias: é também feita de viagens, exílios e encontros. É nesse rio invisível que Borges, Cortázar, Gardel e Vinicius se encontram, cada um à sua maneira, para lembrar-nos que a cultura é, antes de tudo, uma ponte.n

(*) Jornalista de Música